Pão a Pão. A Síria servida à mesa pelas mãos de quem a deixou

O projeto “Pão a Pão” tem a comida como ponte entre a Síria e Portugal. Em fevereiro abrem o primeiro restaurante sírio de Lisboa mas, em forma de teste, encheram dezembro com jantares temáticos feitos por refugiados

Susu leva a colher de pau à boca, acena com a cabeça em sinal de tempero perfeito e volta a dar uma nova mexidela à mistura de carne e especiarias que vai servir de recheio para as ‘samosas’ que começam a ser levadas para a mesa. A azáfama é grande e entre tachos e panelas misturam-se ingredientes e línguas. Susu, por ser a única que domina o árabe, o inglês e o português, desdobra-se em mil tarefas para garantir que ninguém fica sem resposta.

Foi como voluntária que se juntou à iniciativa da “Pão a Pão” de servir jantares sírios nas semanas antes do Natal. “A minha mãe e a minha avó cozinham que é uma delícia. Aprendi com elas e hoje até digo que cozinho com o coração, mais até do que com as mãos”, conta a estudante de medicina dentária, que já pensa até conciliar o emprego de dentista com a paixão pela cozinha.

Ao contrário das outras mulheres que hoje ocupam uma cozinha improvisada no Mercado de Santa Clara, em Lisboa, Susu veio para Portugal porque quis. Já Rana, que apanhamos a empratar a beringela e o tomate que vão dar lugar à ‘Moussaka’ – servida como prato principal –, responde com uma das poucas palavras que sabe dizer em português: “guerra”. Aos 27 anos, veio com a mãe, os dois irmãos, o marido e os dois filhos – de 7 e 9 anos – para Portugal. Nunca deixa de sorrir mesmo quando se lembra dos tempos em que já nem casa tinham, destruída por uma das muitas bombas que iam caindo na vizinhança.

Rafat, um dos irmãos, atravessa a conversa com uma panela de arroz quente nas mãos. Toda a gente se desvia e só os pouco habituados à cozinha do país abrem a boca de espanto quando vêm ser lançado para a panela uma mistura de brasas e azeite que vai dar o sabor fumado ao prato.

Quem o vê entre o esmagar do grão para fazer húmus ou o preparar do ‘Tabule’ com tomate e cebola roxa, não imagina que a sua única especialidade, quando vivia na Síria, eram os ‘Kebabs’, que preparava com o pai no restaurante da família.

“Agora sei fazer tudo e quero mesmo tornar-me cozinheiro”, admite. Mas não sem antes passar pela censura da mãe Fátima, que se aproxima para deliberar sobre os pratos dos dois filhos. Leva uma colher de cada à boca e, sem palavras mas com gestos rápidos, deita mais um copo de azeite no tabule e uma pitada de sal na ‘Moussaka’. Rana e Rabat riem-se, encolhem os ombros e passam para a próxima tarefa. “A mãe é que sabe”, lembra Rabat.

Pão a pão Quando perguntaram a Alaa qual era a coisa da qual mais sentia falta do seu país, nem hesitou ao responder que era o pão. A estudante síria foi acolhida pela família de Francisca Gorjão Henriques que, perante uma resposta destas, começou a traçar um plano. A jornalista juntou-se à designer Rita Melo e ao gestor Nuno Mesquita para criar o “Pão a Pão”, um projeto de integração de refugiados e que, neste caso, faz esse caminho através da comida.

“Havia necessidade de fazer alguma coisa face a esta calamidade”, refere Francisca, “principalmente para as mulheres, que por não terem trabalho são as que mais dificuldade têm no processo de integração”.

Na cabeça deste grupo começou a desenhar-se um restaurante que já tem nome – “Mezze” – e mês de abertura, Fevereiro. Na cozinha deste espaço, que vai também servir de oficina para workshops, dança, música e escrita, vão trabalhar as mesmas mulheres sírias que, durante o mês de dezembro prepararam uma série de jantares temáticos no Mercado de Santa Clara, para quem quisesse conhecer o que de melhor se come na Síria.

E se às 18h30, o cheiro a especiarias já deixava de cabeça no ar os que arrumavam as ultimas tendas de mais uma Feira da Ladra, a poucos minutos das oito, os sentidos estão de tal forma alerta que se confunde o aroma a arroz fumado, com a cor do ‘Tabule’ de legumes e o barulho da romã a partir-se para a salada de entrada.

No meio da azáfama, vai surgindo, ainda que envergonhada, uma cabecita com duas tranças pretas compridas. Jizé tem oito anos e, para já, apenas é espetadora do que a mãe e a avó vão preparando. A sua função, enquanto único membro da família que já domina minimamente o português, é servir de tradutora entre a avó e a senhora do supermercado.

“Já sei dizer tudo, laranjas, batatas, tomate”, conta, ao mesmo tempo que, em árabe, pede à mãe para se lembrar do nome daquele prato que provou em casa da colega da escola e que passou a ser a sua comida preferida em Portugal. “Lasanha”, grita enquanto lambuza uma imaginária torre de massa, carne e tomate, “é isso mesmo”.

Voltar não existe E se Jizé já tem amigas com quem brincar às bonecas – “como fazia na Síria”, conta – Rafat, de 20 anos, queixa-se da falta de companhia. “Não estudo e ainda não consegui trabalho, assim é difícil conhecer pessoas novas”, admite. No entretanto, dedica-se a aprender um português que, apesar de suficiente para dominar uma cozinha, ainda não chega para responder a perguntas feitas com a palavra “saudade”. A irmã Rana vem em seu auxílio e numa troca de palavras em árabe, percebe-se apenas “saudade” e “Hanin”, repetidas várias vezes. Rabat faz um ar de ‘eureka’ e explica: “a minha sobrinha, filha da Rana, chama-se Hanin. Quando chegamos a Portugal percebemos que esse nome quer dizer saudade”.