Passe, cidadão!

‘Mandou-me chamar?’ De 3 a 5 de Outubro de 1910, Lisboa foi respondendo à senha dos rebeldes com o combinado ‘Passe cidadão!’ e a República passou. Cem anos depois de a revolução ter corrido a cidade, o SOL fez o mesmo. Seguindo os passos de três protagonistas – o médico Miguel Bombarda, o almirante Cândido…

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a madrugada de 3 para 4 de outubro, a república saiu para a rua. não era a primeira procissão do género nem a revolta assumiu contornos muito diferentes das anteriores, excepto talvez na consciência partilhada do momento decisivo, do agora ou nunca em que se jogava o tudo ou nada. bem presentes na memória de todos estavam as incursões no porto, a 31 de janeiro de 1891, em plena ressaca do ultimatum inglês, e em lisboa, a 28 de janeiro de 1908, escassos quatro dias antes do regicídio – o acto sacrificial em que se imolaram alfredo costa e manuel buíça, num assomo desesperado para resolver com sangue o que o parlamentarismo e as insurreições não tinham resolvido.

mas a monarquia, mesmo ferida de morte, não morreu com d. carlos e com o príncipe herdeiro luiz filipe no terreiro do paço. d. manuel ii prolongou o estertor monárquico, num último fôlego para evitar a inevitável mudança de um regime velho de quase oito séculos – papel ingrato, já que pouco mais lhe restava do que envergar a coroa de uma «república com um rei», como era vulgo dizer-se. perante um saldo de sete governos em dois anos, não admira que, em 1910, o sentimento de iminência afogueasse o palco principal da política e os ainda mais inflamados bastidores conspirativos.

a 1 de setembro, no rescaldo da retumbante eleição de 14 deputados republicanos no sufrágio de 28 de agosto, antónio josé de almeida escreveu no jornal que dirigia, o alma nacional, um artigo sugestivamente intitulado ‘a postos’. para o destacado partidário da república e maçon, os votos que entraram na urna traduziam «a ânsia indomável de conquistar a liberdade por outros processos mais fortes e mais exequíveis, os únicos que, através da história, têm castigado os salteadores do poder». a última frase do texto é profética: «o povo republicano foi à urna, porque a urna é neste momento, em portugal, o vestíbulo da revolução».

e era. estava escrito. no ambiente. nos jornais. até nos astros. à luz da crescente vivacidade da imprensa da época, o brilho intenso do cometa drake, em janeiro, e o avistamento do halley, em maio, adquiriram uma tonalidade oracular que os periódicos converteram em sensacionais parangonas: «o fim do mundo? de 18 para 19 de maio a cauda do cometa de haley envolverá a terra… e morreremos, talvez, asphyxiados!». que se saiba, ninguém morreu de asfixia ou assistiu ao fim do mundo em absoluto – apenas, meses mais tarde, ao fim do país político como os portugueses o haviam conhecido desde o berço de d. afonso henriques, em guimarães.

à chegada de outubro, a questão já não era se e como esse país político ia acabar, mas quando. no dia 1 do mês decisivo – faz hoje exactamente cem anos –, atracou em lisboa o recém-eleito presidente brasileiro, em visita de estado. ao pouco efusivo marechal hermes da fonseca poderá ter causado alguma perplexidade que por cá se gritassem tão fervorosos vivas à república… do brasil – mas esse era, para as lusas laringes, um pormenor geográfico de somenos importância, um pretexto para soltarem a plenos pulmões o clamor do seu republicanismo.

vladimiro.nunes@sol.pt