Prefácio às memórias secretas de Jardim

Uma amiga convidou-me, no fim do Verão de 2009, para participar num livro colectivo a partir de uma ideia estimulante e divertida (porventura, inspirada em Jorge Luis Borges): escrever prefácios a obras imaginárias de figuras escolhidas por cada convidado.

já não recordo exactamente quais as circunstâncias da altura que me levaram a propor alberto joão jardim como meu ‘prefaciado’. era, em todo o caso, a escolha menos provável de todas e, por isso mesmo, a mais divertida e propícia à ironia.

por razões que desconheço, a edição do livro não se concretizou até hoje, mas o texto que então escrevi manteve-se no meu computador onde há dias fui reencontrá-lo por acaso. confesso que, ao relê-lo, fiquei surpreendido pela estranha – e também irónica – actualidade que me pareceu haver adquirido dois anos depois, tendo em conta os acontecimentos que são conhecidos. e pensei que, apesar do absurdo da situação inventada – ou precisamente por causa dela –, esta era uma oportunidade rara para publicar este ‘prefácio’ a um manuscrito que nunca existiu nem decerto virá a existir (e muito menos me seria misteriosamente confiado pelo putativo autor).

de qualquer modo, divertiu-me bastante a hipótese de ficcionar um destino alternativo e uma personalidade também alternativa para alberto joão jardim (o meu ‘prefácio’ chamava-se, no original, jardim, o bom selvagem, e limitei-me a introduzir no texto dois ou três retoques de pormenor, omitindo por exemplo a identidade do banqueiro, entretanto falecido, que prefaciou a biografia oficial do presidente do governo da madeira, publicada há uns anos a esta parte).

alberto joão jardim, presidente do governo regional da madeira desapareceu misteriosamente numa floresta da macaronésia há cerca de três meses e meio, logo depois de ter sido reeleito uma vez mais para o cargo que ocupava desde 1978, um recorde de longevidade no poder sem paralelo na europa contemporânea.

desde então, não há notícias dele, o que tem suscitado uma onda de emoção e especulações sem fim, não apenas na madeira e no país mas também no mundo. sabe-se apenas que, momentos antes do seu desaparecimento, jardim se separara do grupo que o acompanhava na expedição e exigira que o deixassem sozinho para percorrer recantos secretos da serra virgem. mergulhou na bruma espessa que envolvia os montes e nunca mais foi visto.

as buscas que se fizeram para encontrá-lo, ao longo de dias e noites intermináveis, com recurso a todos os meios humanos e técnicos disponíveis, não tiveram qualquer sucesso. nenhuma pista, nenhum indício, nenhum resto, nenhuma pegada sequer. o presidente da madeira desaparecera literalmente na natureza – ou, como outros aventaram, fora engolido por ela.

ainda mal refeito da surpresa, recebi anteontem pelo correio um espesso envelope contendo um longo manuscrito e uma pequena nota de natureza pessoal com a inconfundível caligrafia e assinatura de alberto joão jardim.

cheguei a pensar que se tratasse de uma brincadeira de mau gosto, mas depois de lida a nota e ter passado uma noite inteira mergulhado nas confissões absolutamente extraordinárias expostas no manuscrito, resta-me acreditar no inacreditável.

alberto joão jardim pedia-me, logo a mim, reputado como um dos seus inimigos de estimação, que tomasse a iniciativa de divulgar o documento que me fizera chegar às mãos. e como se isso não fosse suficiente, propunha-me ainda que escrevesse – estando eu de acordo – o respectivo prefácio.

não divulgarei, por motivos óbvios de honra e discrição, o conteúdo da nota pessoal que me foi endereçada. não só porque nunca aproveitaria a ocasião para ajustar contas antigas, mas sobretudo porque o manuscrito que me pediu para editar revela uma introspecção da personalidade de alberto joão jardim que irá desfazer por completo, estou plenamente convicto, a imagem que ele próprio projectou, ao longo de mais de três décadas, sobre o seu papel e carreira política.

julgo não dever prejudicar a surpresa que o leitor encontrará nas páginas que se seguem e, por isso, desejo manter tão intacta quanto possível a sua curiosidade. limito-me a observar que, lendo o manuscrito, se compreenderá perfeitamente porque é que alberto joão jardim escolheu desaparecer na floresta virgem da macaronésia depois de ter tentado deixar a sua inapagável marca de faraó moderno na natureza selvagem da madeira.

percebo agora porque é que me foi tão difícil, aqui há uns tempos, encontrar nas livrarias madeirenses um derradeiro exemplar da principal biografia oficial de alberto joão jardim (madeira – jardim há 30 anos), um insuperável panegírico escrito por uma repórter do oficialíssimo jornal da madeira e prefaciada por um dedicado banqueiro do regime. a edição não esgotara, mas os exemplares restantes teriam sido recolhidos pela editora, por motivos inexplicáveis, conforme me sugeriram alguns livreiros? a editora falira, segundo me foi também dito, apesar da garantia de sucesso da obra? inclino-me hoje a presumir, embora o manuscrito seja omisso a tal respeito, que a razão maior do enigma terá sido a que explica o desaparecimento de alberto joão jardim entre as brumas da macaronésia. ele já não se reconhecia na fotografia encomendada para o endeusar e preferiu fazê-la também desaparecer.

de facto, jardim já se cansara definitivamente de ser actor numa peça que ameaçava nunca acabar, depois do seu interminável trabalho de hércules (ou, se preferirem, reeditando o mito de sísifo), quando apostou em transformar a beleza natural da madeira numa irreconhecível paisagem de betão armado.

não anteciparei mais a curiosidade e a surpresa do leitor. apenas acrescentarei que alberto joão jardim terá desejado, porventura, seguir os passos de jean-jacques rousseau e assumir um novo papel que o libertasse da fadiga repetitiva e das pesadíssimas grilhetas do seu passado: o papel de bom selvagem. é um destino trágico, absurdo, camusiano? atrevo-me a pensar, pelo contrário, que é um destino feliz. aliás, já dizia camus que é preciso imaginar sísifo feliz.