Recorde a grande entrevista de José Hermano Saraiva ao SOL (1ª parte)

Em 2009, assinalando o 90.º aniversário, José Hermano Saraiva concedeu uma entrevista de vida a José António Saraiva, seu sobrinho e director do SOL.

nota introdutória de josé antónio saraiva, em 2009: a entrevista tem lugar na varanda das musas, na casa de josé hermano saraiva em palmela. uma casa projectada por ele próprio, realizando o sonho antigo de ser arquitecto. a mulher, maria de lurdes, e o seu produtor, josé antónio crespo, sentam-se a dois ou três passos de distância. pela varanda (e por cima das mesas) passeiam-se gatos ainda jovens, que são o último encanto do historiador. joão vilhena fotografa constantemente, por vezes aproximando muito a máquina do rosto do entrevistado para fazer grandes planos. eu sento-me perto: apenas uma pequena mesa de madeira de tampo trabalhado me separa do meu tio, que por estes dias faz 90 anos. recordo que exactamente há 40 anos entrevistei o meu pai, na sua primeira vinda a portugal após um longo exílio. essa entrevista seria publicada no comércio do funchal e teve algum impacto, pelo prestígio intelectual de antónio josé saraiva (várias vezes citado nesta entrevista) e pela curiosidade de ser o filho a entrevistá-lo. 40 anos depois entrevisto o meu tio e padrinho. espero não desiludir os leitores. nestes 40 anos perdi com certeza frescura e espontaneidade; mas ganhei conhecimentos e algum traquejo jornalístico.


ainda conheci o seu pai e meu avô – o ‘avô saraiva’, como lhe chamávamos. eu via-o como um rato de biblioteca: passava os dias metido no escritório, como se fosse uma toca, com um gorro de astrakan enfiado na cabeça, ali no prédio da rua eduardo coelho. andava pouco pela casa, o escritório é que era o seu mundo. lá sentia-se protegido. qual a memória mais marcante que tem desse período da infância e da relação com o seu pai?

a presença que domina completamente a minha infância, e mesmo a juventude, não é o meu pai, é o antónio [antónio josé saraiva], meu irmão e teu pai. a minha ligação com o antónio era uma coisa quase visceral. eu pensava o que ele pensava – ele era de uma grande agressividade mental, estava sempre a dizer coisas novas e eu seguia-o sem me aperceber de que eram coisas novas. o meu pai punha-se num outro plano. era a autoridade incontestável e isso também marcou. lá em casa, ao almoço e ao jantar falava-se, discutiam-se acaloradamente os painéis do infante santo [josé saraiva, pai de josé hermano saraiva, tinha uma tese original sobre os painéis, que foi publicada no livro os painéis do infante santo]. a discussão dos painéis era uma cruzada em que toda a família embarcava: era o infante santo, não era o infante santo… isso durou anos. recordo-me que o meu primeiro trabalho foi ajudar a dobrar as folhas do livro dos painéis. eram umas 16 folhas grandes, que a gente dobrava com umas facas de osso ou marfim para fazer os cadernos. é a primeira recordação que eu tenho de trabalho. a única política lá em casa era, portanto, os painéis. isso marcou-me quer a mim quer ao meu irmão, mas não marcou os mais novos, porque os mais novos não tinham idade para discutir a questão. as verdadeiras causas por que a gente se bateu foram as causas da cultura.

mas com certeza falavam também de política. a revolução de 28 de maio dá-se quando o tio tem sete anos. dois anos depois salazar é ministro das finanças. e, quando chega a chefe do governo, o tio já tinha 11 anos. não discutiam isto em casa? não se falava de salazar?

esse foi um fenómeno indescritível: o salazar aparece na política portuguesa como se o messias tivesse vindo ao mundo. é uma coisa fulgurante e súbita. todos estávamos entusiasmados. o teu pai também. para o gozarem, os colegas do liceu disseram-lhe um dia: ‘sabes, morreu o salazar. veio no jornal’. e ele, que era um miúdo, apareceu em casa a chorar, desesperado. é preciso ver qual era o ambiente político na nossa casa. falávamos de cultura, claro. mas o meu pai tinha sido presidente da câmara municipal de leiria no tempo do sidónio pais. era um sidonista, portanto, e os jornais que assinava eram o novidades, um jornal católico, e a voz, do conselheiro fernando de sousa, que nessa altura ainda se chamava época. o meu pai comprava o diário de notícias para ele. ele lia o diário de notícias, e o resto da família lia o novidades e a voz. era um clima de direita acentuado.

além disso, a minha mãe era muito religiosa. e quando estávamos em leiria deu-se um acontecimento fundamental para a cidade, que fez abalar as torres da catedral, que foi as aparições de fátima. todas as visitas da minha mãe, senhoras, discutiam acaloradamente. e diziam: ‘sim, sim, sim’. porque havia umas autoridades civis que eram contra e tentavam forçar as crianças a desdizer o dito. isso criou um clima de confronto. a cidade de leiria estava, pois, dividida em dois partidos: fátima e não fátima. é claro que lá em casa era-se pelo partido de fátima. o meu pai não era por esse partido, mas condescendia com a minha mãe em levá-la a fátima. levava-nos a todos e conversava com o bispo de leiria, d. josé alves correia da silva, que falava sobre a autenticidade, o prodígio… isso para mim foi muito útil, porque me levou a tomar perante o facto uma atitude de complacência, que muitos anos depois me salvaria de uma situação delicada. acontece que 50 anos mais tarde fui convidado pelo dr. mário soares a ir à sua fundação fazer uma conferência. ‘sobre quê?’, perguntei. ‘o que quiser’, disse ele. chego lá, a sala estava cheia e na mesa estava o bispo de leiria, o dr. mário soares e eu. e mário soares anuncia que eu vou falar sobre o milagre de fátima! ora, na presença de soares e do bispo, não era fácil falar do assunto. mas eu evoquei esses passeios com o meu pai e com o antigo bispo de leiria pelas estradas do pinhal, com os pirilampos nas bermas dos caminhos, e fiz uma intervenção que agradou tanto ao dr. soares como ao bispo…

o seu pai era salazarista?

era.

mesmo salazarista? e foi-o toda a vida?

o meu pai admirava a obra de reconstrução do estado feita pelo salazar, sem gostar do salazar. não gostava dele. tinha havido uns anos antes um incidente e o meu pai não gostava do dr. salazar. mas admirava a obra. salazar entrou na política de uma forma muito contundente – acabou com as acumulações, acabou com isto, acabou com aquilo, reduziu os ordenados… o problema era muito grave, como é agora, e ele entrou com violência para reduzir a despesa, e reduziu. e essa redução da despesa permitiu o almejado equilíbrio orçamental. de maneira que o meu pai tinha por ele admiração. era um homem de confiança, sem gostar pessoalmente da pessoa.

disse há pouco que quer o tio quer o meu pai viam nessa época salazar como um messias. o tio tem umas fotografias de juventude onde aparece com a farda da mocidade portuguesa. tiveram alguma militância política?

vou dizer-te uma coisa que não sabes e que te vai surpreender muito: quando eu fui buscar a minha farda da mocidade portuguesa, o teu pai foi à legião buscar a farda de legionário. só que esteve lá em casa poucos dias, porque ele depois entendeu que não estava certo e foi devolver a farda. não sei se o meu pai terá tido alguma influência nisso, a verdade é que ele era tão de direita como eu nessa altura. só depois, na faculdade, foi literalmente enxotado para a esquerda. o que lhe fizeram colocava qualquer pessoa numa situação de hostilidade e de desafio em relação ao regime. depois de ter sido demitido de assistente da faculdade, por razões que não tinham que ver com a política, concorreu para viana do castelo, para professor do liceu, e aí a pide convenceu-se de que ele era o organizador do sector intelectual do partido comunista, o que não era verdade, e prenderam-no. foi indecente. esteve uns meses preso. mais tarde teve de exilar-se em paris e pertenceu de facto ao pcp. mas numa ida à rússia teve um conflito com o cunhal e foi de uma valentia extraordinária. ficou em moscovo sem um centavo no bolso e disse: ‘não quero nada com vocês, vou-me embora’. é espantoso! não sei como ficou vivo. a partir daí, a grande mudança dele não foi política, foi epistemológica. como valor-chave e critério de toda a cultura ele passou a achar que primeiro era o verbo. portanto, passa de uma posição radicalmente materialista para uma posição radicalmente espiritualista.

voltemos atrás, para seguir uma ordem cronológica. exactamente quando entra na idade adulta, aos 21 anos (antigamente era-se maior aos 21 anos) tem lugar a exposição do mundo português, que é a consagração da obra do regime. que memória tem dessa época?

isso marca, realmente, uma época na minha vida. a exposição era extraordinariamente brilhante e o meu tio joão [o pintor joão hermano baptista] colaborou na manufactura de alguns painéis, o que redobrava o interesse familiar pelo acontecimento. além disso, por essa altura, começava eu a namorar aquela senhora [aponta para a mulher, que assiste à entrevista sentada à sua frente] e isso dá a esses quatro anos de vida uma aura de poesia e de realidade espiritual envolvente que me situam fora do mundo. eu fui com ela à exposição – e isso é uma das coisas que não esqueço.

ia falar-lhe exactamente disso. o tio e o meu pai namoraram duas colegas da faculdade, com as quais casaram, embora os casamentos tenham tido rumos diferentes. como foram esses tempos da faculdade? conversavam os dois sobre as namoradas e os namoros?

aí há uma correcção a fazer. é certo que simultaneamente eu namorei a maria de lurdes e o teu pai a maria isabel. mas eu namorei a maria de lurdes cinco anos e o teu pai namorou a tua mãe um mês! o teu pai foi sempre dado a grandes arrebatamentos, e recordo-me de que, durante esse mês, a tua mãe foi com os pais e as irmãs para umas termas onde costumavam ir no verão [caldas de felgueiras]. o antónio foi acompanhá-los à estação. e quando chegou a casa teve um espasmo de dor tão violento que perdeu a respiração. eu deitei-me em cima dele a fazer respiração boca-a-boca e chamou–se um médico, o dr. assunção teixeira, que lá lhe deu um medicamento qualquer que o serenou. mas ia morrendo. ele era de uma violência de sentimentos… em tudo. aliás, teve várias erupções, todas elas com essa violência. tenho aí os escritos que documentam essa fase dele. são muito bonitos, são lindíssimos: cartas de amor, poemas. ele era realmente de um romantismo… de maneira que nunca chegou a haver propriamente essa situação de dois casais de namorados. porque eles começaram a namorar depois dos exames e casaram ao reabrir das aulas. a maria de lurdes e a tua mãe davam-se muito, andavam muitas vezes juntas, mas sempre numa relação cerimoniosa que não era de convergência mas de análise.

entretanto fez a tropa. em leiria, penso eu…

aí tenho uma história impressionante. eu gostava muito das botas altas, que fazem as pessoas mais elegantes, e havia em belém um sapateiro, o barroso (cuja casa já vinha do século xix, os grandes marechais do século xix calçavam no barroso), que tinha fama de fazer as melhores botas de portugal. fui então lá e mandei fazer umas botas. o preço era 800 escudos. ora, eu contava com o prémio do teatro do povo para as pagar. era um prémio de um conto de réis – e, para mim, não havia dúvidas: eu concorria, ganhava o prémio e pagava as botas. só mais tarde me começou a ocorrer que concorrer e ganhar não é exactamente o mesmo. pode-se concorrer e não ganhar… e comecei a estar numa grande aflição: como havia de esclarecer a questão perante o meu pai? estava eu nisto quando recebo, no mesmo dia, um telefonema do barroso a dizer ‘estão prontas, venha buscar’ e um ofício amarelo do sni a dizer ‘ganhou o primeiro prémio, pode vir buscar’. considerei isto emocionante.

depois de se formar em história, o tio vai leccionar para o passos manuel, onde o seu pai era reitor. entretanto casa, e depois de casado é que vai tirar direito, para sustentar a família…

não foi bem assim. eu fiz um curso de letras muito bem classificado, era talvez o melhor aluno do curso, e alguns professores, em particular o dr. mário de albuquerque, sugeriram que eu lá ficasse como assistente. quando chegámos ao exame, defendi a tese um bocado agressivamente. o professor que discutia a tese era o délio nobre santos, que começou por fazer críticas severas e depois chegou ao fim e disse: ‘estou contente, terminou o seu exame’. ao que eu lhe respondi: ‘o senhor está contente mas eu não estou. fez aí umas críticas erradas e ainda não disse que se enganou. que o senhor estava enganado e que a tese é que está bem. e eu não dou o facto por concluído enquanto o senhor não o reconhecer…’ e ele então diz: ‘pois tenho muito gosto em fazer essa declaração’.

no dia seguinte, o arguente era o prof. mário de albuquerque. que disse a quem o queria ouvir: ‘ontem, o saraiva estendeu o délio. mas hoje vai ver que, quando um professor quer estender um aluno, não há nada mais fácil’. aí, eu falei com vários colegas, fomos à secretaria da faculdade e eles depositaram lá um papel onde se dizia: ‘sim, o senhor professor anda aí a dizer que vai fazer isso’. e assinaram.

quando começa as perguntas, o prof. mário de albuquerque atira: ‘olhe, diga-me uma coisa: recorda-se qual é o nome que se dá ao canal de corinto numa obra geográfica do século vii?’. ‘eu não’. ‘pois é pena, passemos ao segundo ponto: recorda-se do nome de um teólogo que criticou o cristianismo no século iv?’. ‘também não’, respondi. ‘já é o segundo ponto. vamos ao terceiro’. e eu nessa altura reagi: ‘o senhor andou aí a dizer a toda a gente que me ia estender e está a tentar fazê-lo. isso não são perguntas que se façam, são perguntas de grande especialidade sobre as quais o senhor nunca disse uma palavra. portanto recuso-me a continuar o exame e vou requerer procedimento disciplinar contra si com documentos que já estão depositados na secretaria’. isto deu um barulho dos diabos lá dentro, saímos todos, e cá fora ainda se agravou porque no corredor ele vinha dar-me uma explicação, vinha tentar deitar água na fervura, mas eu estava tão enervado que me mostrei agressivo. os colegas meus amigos lá me seguraram e aquilo ficou assim. mas o exame ia em meio. o presidente do júri era o prof. matos romão, velho amigo do meu pai. ele apercebeu-se da gravidade da situação e fizeram-me uma proposta: ‘damos-lhe 12 valores e o senhor não fala mais nisso’. e assim acabou o exame. mas eu, que esperava 18, fui logo matricular-me em direito. fui para direito por causa disso, dessa nota baixa que tive em letras e que impedia quaisquer projectos de ficar na faculdade.

mas acaba direito já casado…

terminei direito já casado.

e depois de acabar direito nunca mais pensou no curso de história e seguiu a carreira de advogado…

enquanto fazia direito fiz o estágio de professor de história. e depois dava aulas de história e ia simultaneamente às aulas do primeiro e segundo anos de direito. era professor num sítio e aluno noutro… acabei direito com 17, uma nota que rarissimamente lá davam.

que memória tem das aulas de história que dava no liceu passos manuel?

foi um período muito interessante, de tentativa de contar uma história diferente. muitos daqueles rapazes foram para história por causa dessas aulas. era um curso em que eles é que faziam a história, eles é que descobriam os acontecimentos. iam para a torre do tombo, levavam objectos no bolso… por exemplo: esta mesa é uma peça de história. é uma cópia de uma peça do século xviii, de pau-santo. imagina quantas horas de trabalho estão aqui. só era possível fazer uma peça como esta porque o trabalho no século xviii não era pago como hoje. cada aluno levava um caderno, fazia o seu trabalho e depois todos os colegas classificavam. aquilo era um sistema de auto-avaliação, não havia erros. foram anos apaixonados. ainda tenho aí trabalhos deles. e ainda hoje me reúno com eles uma vez por ano. alunos de há 50 anos…

quando acaba o curso de direito começa a exercer advocacia… e apaixona-se pelo direito, porque ainda recentemente publicou um livro de direito…

é. apaixono-me pelo direito. há duas maneiras de encarar o direito: uma é que o direito é um grande livro de receitas, um receituário onde o juiz tira a receita e aplica; outra é que é um sistema filosófico que gere uma sociedade, um ordenamento jurídico global em que a maior parte dos casos não está prevista, sendo o juiz que dentro desse sistema global e coerente de valores encontra a decisão adequada. eu sou por esta segunda via, e todos os meus trabalhos visam isto. os nossos juízes são cada vez mais mecânicos. temos assistido aí a coisas horrorosas, com que ficamos assombrados. mas há cada vez mais casos em que se vê que há uma ignorância do sistema. o direito é uma forma de civilização – e foi assim sempre desde os romanos. este último livro tem essa mesma intenção.

depois de se formar instala-se logo na rua do ouro como advogado?

não. depois da formatura há dois anos de estágio. eu fiz o estágio mal feito, porque foi com um advogado que não dava assistência nenhuma. depois arranjei um escritório num 4.º andar da rua da madalena, em que estive três ou quatro meses sem ganhar um centavo e onde fiquei dois anos. fiz isso juntamente com dois colegas: um era o josé lourenço pereira, prematuramente falecido, e o outro o fernando correia de araújo, que era um príncipe. uma pessoa de uma elegância, de uma lealdade, de uma amizade notáveis. o filho dele é assistente em direito. gostava que ficasse esta minha homenagem ao fernando correia de araújo, que foi realmente um nobilíssimo carácter. aliás, tinha a quem sair. depois da república, os oficiais do exército que antes tinham jurado morrer pelo rei juraram todos morrer pela república, excepto um, que disse: ‘juramento só há um’. e foi iniciar vida no brasil. depois é que vai para a rua do ouro…

vou para a rua do ouro, sempre com o dr. araújo, mas também já com o antónio paulouro. e fazíamos lá um jornal chamado gazeta do comércio e da indústria. era um jornal de actualidades comerciais e que durou dois anos ou três. teve algum êxito porque era um jornal útil. tinha o consultório fiscal, o consultório jurídico… mas fechou porque era caro e não dava. ainda lá tenho o escritório, onde vou de longe em longe.

eu lembro-me dessa fase em que o tio trabalhava muitas horas, fumava muitos cigarros, bebia muitos cafés (ali na tofa, na rua do ouro, que era mesmo em frente do escritório)…

é verdade.

por causa disso, desse ritmo e desses excessos, teve na altura uns problemas de saúde.

eram dias esgotantes. eu ia para o escritório às oito e meia da manhã e estava lá até à hora do jantar. às vezes esquecia-me de jantar. recordo-me de um caso em que tive de fazer a defesa de um médico. um médico parteiro. a alegação estava pronta mas faltava passá-la à máquina. quando chegou a meia-noite, eu disse: ‘ó senhor dr. câmara pires, eu já não posso de cansaço’. ele respondeu-me: ‘eu tenho aqui um comprimido para esses casos’. deu-me um comprimido e eu fiquei. aí às quatro ou cinco da manhã a cena repetiu-se, e vai outro comprimido. em suma, fui para casa às 10 da manhã. ganhei a questão. quando ele quis fazer contas, eu disse: ‘o senhor dr. é amigo, veio recomendado por um amigo (o prof. marcello caetano) e o caso foi difícil. mas foi o senhor quem fez o preço quando eu disse que já não podia mais e o senhor me disse: ‘isto é um parto e um parto não se pode interromper, é fatal. portanto, não sai daqui.’ ora bem, é isso mesmo: levo-lhe o preço de um parto’. ‘acho óptimo’, respondeu ele. ‘essa é uma decisão justa. está aqui o cheque, ainda fresquinho’. e estendeu-me um cheque datado da véspera. fui levantá-lo ao banco, mas o cheque não tinha cobertura. chamei o médico e ele disse–me: ‘isso agora não é comigo. o senhor disse-me que era o preço de um parto e isso é o que eu levo por um parto. às vezes pagam, outras vezes não pagam’. chamei o homem, e ele disse: ‘ó senhor doutor, era uma situação dolorosa em que ele disse que ou operava a minha mulher ou ela morria. eu disse que não tinha dinheiro e ele respondeu: ‘não importa, passe um cheque.’ e eu passei um cheque, para a minha mulher não morrer’. claro que não fiz mal nenhum ao homem…

apesar desses percalços, ganhou muito dinheiro como advogado…

ganhei bastante dinheiro. eu não era explorador mas ganhei bastante. vivia muito à vontade. se via uma carpete bonita, comprava-a. se via um móvel de pau-santo… agora é completamente diferente. agora não posso, a não ser que seja algo de excepcional.

entretanto, é mais ou menos por esta época que entra na política. como procurador à câmara corporativa ou como deputado?

primeiro como deputado.

a convite de quem?

a convite do antónio paulouro, director do jornal do fundão. o deputado pelo círculo era um cónego, monsenhor santos carreto, mas o patriarcado não achou bem ter um cónego metido na política, de maneira que foi substituído. o antónio paulouro, que era director do jornal do fundão e tinha uma enorme influência na região, pôs a questão: ‘se o deputado for fulano (que era eu), apoio a lista, se não for, não apoio’. portanto, incluíram-me na lista e fui deputado durante quatro anos. depois não quis continuar. renunciei porque, na verdade, apercebi-me do tempo perdido. a gente estava ali… nunca ninguém me coarctou a liberdade, era completamente livre de dizer o que quisesse. só que isso não servia para nada. a decisão estava tomada, era aquela, dissessem os deputados o que dissessem. ora, não vale a pena um tipo gastar quatro anos da vida numa coisa que não serve para nada. depois é que o chefe do governo me chamou para a câmara corporativa.

há um episódio muito curioso que o tio conta nas memórias. quando era procurador, faz um discurso na assembleia nacional que salazar apreciou muito mas que a televisão não filmou. então o presidente da rtp pediu-lhe para repetir o discurso no parlamento vazio e lá fizeram uma montagem, que depois passaram.

foi assim mesmo. foi o discurso dos 40 anos do regime, em 1966. o homem que dirigia a televisão disse aos serviços: ‘dêem o discurso do melo e castro [o presidente da união nacional à época], o do saraiva não vale a pena’. mas salazar gostou tanto do meu discurso que à noite ligou a televisão para me ouvir outra vez. e não deu. ligou então para a rtp e perguntou: ‘o que é que se passa?’. e de lá disseram-lhe: ‘o discurso era tão notável, tão notável, que a gente não teve coragem para o cortar. portanto temo-lo aqui inteiro para dar no dia de ano novo’. depois foram-me buscar a casa, fui só com o meu filho mais novo, o rodrigo, e estive sozinho na sala a fazer o discurso.

quando aceitou o convite para a câmara corporativa pensava já numa carreira política?

não, porque era um cargo técnico, de professor. eu representava o ensino liceal e tratava-se de medidas para aperfeiçoar o ensino. era puramente técnico. o que aconteceu foi que nessa legislatura houve um plano de fomento. os planos de fomento definiam a acção do estado para os próximos cinco anos, e tinha capítulos referentes à economia, às finanças, à educação, às obras públicas, etc. com grande espanto meu, o presidente da câmara corporativa, que era o luís supico pinto, chamou-me e disse-me: ‘é preciso fazer o relatório da parte da educação e é o senhor que está indicado’. eu fiquei muito admirado, porque havia ali precedentes – e quem fazia sempre o relatório da parte da educação era o reitor da universidade de coimbra. naquele caso até havia dois reitores: o de lisboa e o de coimbra. o de lisboa era o prof. palma carlos e o de coimbra era o prof. andrade gouveia – e ambos se recusaram. um disse que tinha um doutoramento em paris e o outro que tinha de ir não sei onde… e eu acreditei – e levei, portanto, o plano, que vinha do ministério da educação. qual não é o meu espanto quando vejo que o plano era assim: ‘desde que há dez anos assumimos a responsabilidade desta pasta, longo foi o caminho percorrido. assim, por despacho tal e tal…’. e seguiam-se todas as disposições tomadas em dez anos: despachos, portarias, etc. um grosso volume. no fim, dizia-se: ‘e, para o futuro, uma palavra diz tudo: continuidade’. eu fui ter com o dr. luís supico e disse: ‘os reitores não fizeram a crítica porque isto é incriticável. o governo, na parte mais melindrosa, que é a educação, entende que está tudo bem. e eu, ou digo o mesmo ou faço outro plano’. ‘bom, deixe-me pensar…’, disse o dr. supico. com o ‘pensar’ queria ele dizer ‘falar com o salazar’. no dia seguinte chamou-me lá e disse-me: ‘olhe, pensei no seu caso e estou de acordo. por isso mesmo é que o senhor foi escolhido: porque era preciso uma pessoa que num mês faça o relatório e apresente um plano’. percebi que foi o presidente do conselho que me escolheu. e eu fiz um relatório, um relatório muito importante, com alterações fundamentais que toda a gente apreciou muito. foi aprovado por unanimidade na câmara, foi aprovado por unanimidade no parlamento. depois o ministro disse que era uma desconsideração e que não o punha em prática. por esta razão fui eu chamado ao governo.

e assim chega a ministro da educação. mas antes de ser ministro fora reitor do liceu d. joão de castro e antes ainda tinha estado no icspu, na junqueira. foi uma década muito marcada pelo ensino…

foi. gostei muito de estar no iscspu.

mas arranjou um inimigo para a vida.

arranjei um inimigo, sem razão nenhuma. nenhuma! o prof. adriano moreira, que era o director, sabia que eu era um dos predilectos do dr. salazar, porque o dr. salazar me deu muitas palavras de consideração. por exemplo, na sessão comemorativa dos 40 anos do regime, como disse atrás, eu é que fiz o discurso na câmara corporativa. e ao sair com o supico, o salazar disse-lhe: ‘pode dizer ao saraiva que eu na minha vida nunca tive inveja de ser um grande orador. mas hoje tive’. foi este discurso que eu depois tive de repetir de madrugada. houve assim várias coisas que revelaram muita consideração. o prof. adriano moreira estava furioso e começou a fazer-me umas patifariazinhas. daquelas escolares: ‘olhe, você não pode dar esta cadeira, tem de dar aquela’. eu preparava aquilo, levava lá o esquema e ele dizia: ‘mas esta cadeira não é sua’. ‘mas foi você que me disse …’. ‘eu não disse nada’. fez-me isto quatro vezes. uma das vezes era sociologia das instituições. eu não sou sociólogo, mas fui com a minha mulher a itália, andámos lá dois meses, vim com duas malas carregadas de livros de sociologia, e fiz um esquema para o curso. ‘olhe, o plano do curso está aqui’. ‘mas o que é isto?’. ‘então, é a sociologia das instituições…’. ‘você está doido? aqueles gajos do campo santana fritavam-nos, isso é com eles’. respondi: ‘olhe, dê-me então uma cadeira qualquer, desde que não seja processos. eu não gosto de processos, não é teorizável’. ora, quando vem o guia das aulas, era mesmo processos. dei a cadeira mas fui ter com ele e disse-lhe: ‘o que vale mais, um amigo ou um emprego?’. ele não percebeu. respondeu: ‘depende do emprego e do amigo’. ‘o amigo é você, de tantos anos, o emprego é isto. portanto, venho entregar-lhe o emprego para conservar o amigo’. estendi-lhe a mão e fui-me embora. nunca mais nos falámos.

ficou sem o emprego e sem o amigo… [risos]

acabou ali o amigo e o emprego. ele agora escreveu um livro que ainda não li.

já disse que salazar tinha grande consideração por si. com que ideia ficou dele depois de o conhecer mais de perto? foi um dos ministros do último governo do salazar…

como ministro pouco contacto tive com ele. a ideia que tinha dele era realmente a de um justo, no sentido religioso do termo. e um homem com uma inteligência privilegiada. grande escritor e de um grande humanismo – naqueles 40 anos não há ‘casos’, não houve nada disso. muito coerente, não era democrata, não acreditava na democracia. mas alguém acredita? contam-se umas tretas, convence-se uma malta… mas voltando ao salazar, penso que o país lhe deve muito. e chegou ao fim na miséria. eu ajudei a pagar a conta dele do hospital da cruz vermelha. não há outro caso de estadista deste género. era um homem com um grande respeito pela verdade.

quando foi ministro revolucionou a educação, embora os louros tenham ido em boa parte para veiga simão, que foi o seu sucessor. mas o seu mandato na educação fica muito marcado pelos acontecimentos de coimbra. é um terramoto que abala o regime – e o tio acaba por estar no centro dos acontecimentos.

nessa altura saiu um livrito deles chamado a crise de coimbra e lá está tudo explicado.

mas foi apanhado de surpresa…

completamente de surpresa. por uma associação que eu tinha empossado 8 ou 15 dias antes – e que, se me tivesse dito ‘nós queremos falar na sessão’, era o que eu queria. mas não, não me falaram nisso. estiveram comigo, almoçaram comigo, tudo muito bem, e fizeram aquela surpresa de, no meio da sessão, se levantar o martins [alberto martins] e dizer: ‘senhor presidente, peço a palavra’. o presidente [américo thomaz] ficou muito alvoroçado e disse: ‘bem, mas agora fala o senhor ministro das obras públicas’. creio que eles entenderam que aquilo significava aprovação. mas de facto significava ‘não’. e, mal acaba de falar o ministro das obras públicas, o presidente diz: ‘está encerrada a sessão’. cria-se então dentro da sala um clima de cortar à faca. ninguém protestou, não houve um murmúrio, mas sentia-se uma tensão brutal.

mas depois os incidentes foram no corredor. era difícil o presidente passar…

a sala não era muito grande, teria uma centena ou duas de lugares sentados, mas havia muita gente em pé, a sala estava apinhada – e toda essa gente veio depois encher o corredor, não dando passagem ao presidente. o presidente ia levado num braço pelo ministro das obras públicas e no outro braço pelo presidente da câmara de coimbra. era assim que iam rompendo caminho. mas aí começou a ouvir-se uma coisa em coro, que eu não percebi, era uma palavra de três sílabas que eu julguei ser ‘palhaço’. parecia que diziam ‘palhaço, palhaço, palhaço’. depois explicaram-me que não, que era ‘queremos falar, queremos falar’. ainda hoje não sei a verdade. não me pareceu que aquilo tivesse sido preparado e, portanto, entendi que não devia castigar ninguém. aliás, falando com elementos da associação nessa mesma tarde, disse-lhes: ‘isto resolve-se se vocês explicarem que não queriam ofender o presidente…’. ‘mas é que não queríamos mesmo ofender…’. ‘então digam isso mesmo. vão a lisboa e dizem isso ao senhor presidente da república’. ficou assim. mas depois meteram-se três professores nisto que disseram: ‘não, não, não vão nada a lisboa pedir desculpa. vão a lisboa, mas dizem que têm de ser ouvidos, que têm de falar’. depois meteu-se um outro, o queiró: ‘não senhor, vocês vão fazer um discurso politicamente correcto’. e nisto o chefe do governo [marcello caetano], que estava em áfrica, regressa a lisboa e exige a suspensão da direcção da associação académica. contra a minha opinião, porque eu disse–lhe: ‘olhe que isto não é uma reacção organizada’.

foi contra a suspensão dos dirigentes da associação académica que houve depois manifestações. foram manifestações sem gravidade. eu fechei a universidade, estávamos em maio ou em junho, e acabou-se. com os exames é que eles vieram a criar uns dispositivos de luta contra os cordões da polícia e agrediram os colegas que queriam fazer exame. e aí é que a coisa assumiu uma certa gravidade.

devo dizer-te uma coisa: aí o governo não agiu por meu intermédio. até há pouco tempo, até há meses, eu garanti que ninguém tinha ido para a tropa por causa desses eventos. mas, tanto ouvi dizer que sim, que pedi ao meu filho mais velho, o zé, para consultar os diários do governo e ver se lá aparecia alguma coisa. e aparece de facto um decreto a mandar para a tropa os cabecilhas do motim. só que o decreto não tem a minha assinatura. tem a do chefe do governo e a do ministro da defesa, que publicam um decreto sobre estudantes sem a assinatura do ministro. vê a deslealdade que isto representa! porque eu nunca concordaria com uma coisa dessas. guerra é guerra, paz é paz, não se podem baralhar as coisas. mas, enfim. em todo o caso, creio que se deu ao incidente uma dimensão muito maior do que ele tinha. e ao reabrir o ano escolar, em outubro, estava tudo completamente sereno, com as aulas a funcionar sem qualquer agitação. quando teve lugar a remodelação ministerial, em dezembro, já não havia nada, nada. portanto, foi um pretexto do dr. marcello para substituir um ministro da educação que não provinha do ensino superior. esse era o problema dele. e foi buscar o prof. simão à universidade de moçambique.

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