Resgates: Chutar para a frente

Irlanda e Portugal arriscam sair da troika sem resolver os problemas que os levaram ao resgate. Na Irlanda, 25% dos empréstimos bancários estão em risco de não serem pagos. Em Portugal, a reforma do Estado está por fazer. Dívida e emigração em massa são a herança.

há um ano, os documentos internos da comissão europeia descreviam portugal e irlanda como os “poster boys” da troika: os exemplos de sucesso da austeridade e das intervenções externas na zona euro, após o falhanço na grécia e ainda antes da crise em chipre.

a expressão desapareceu dos documentos mais recentes e o tom, além de mais cauteloso, começa a separar os países de ‘sucesso’.

na semana passada, numa apreciação interna feita ao orçamento do estado irlandês para 2014, bruxelas admitiu que o ex-tigre celta poderá fazer uma saída da troika sem programa cautelar, realçando o “optimismo” crescente no país.

já na avaliação do oe2014 português, a tónica é colocada no risco de um segundo resgate ou no “activismo político” do tribunal constitucional. de um eventual programa cautelar para lisboa, nem uma linha.

apesar do tom menos efusivo, a comissão europeia sabe que precisa de pelo menos dois casos positivos para justificar a política dos últimos três anos. e portugal continua a ser um dos escolhidos. “o sucesso do programa é importante para portugal e para a europa”, lê-se no documento da representação da ue em lisboa sobre o oe2014.

bons alunos

irlanda e portugal cumpriram cerca de 90% das medidas dos seus memorandos até hoje, mas as semelhanças terminam aí.

dublin apresentou um orçamento para 2014 onde se compromete a atingir um défice orçamental abaixo do pedido pelos credores (4,8% do pib, face a uma meta de 5,1%). conseguiu ainda evitar 600 milhões de austeridade no próximo ano, não tocando naquilo que a comissão descreve como os “big tickets” – o irs e a maioria das prestações sociais. nos últimos seis anos, o governo irlandês fez apenas um oe rectificativo e nos últimos três cumpriu todas as metas do défice acordadas com a troika.

mas é na esfera financeira que se situam os ‘trunfos’ da irlanda e aumenta a distância face a portugal. os juros da dívida pública irlandesa a 10 anos estão a 3,5%, mais próximos dos alemães do que dos portugueses. no prazo a dois anos, estes estão pouco acima de 1%, um sinal de confiança dos investidores que poderá ser o ‘passaporte’ para sair da troika sem um cautelar. usando a gíria de bruxelas, um “clean exit”.

em portugal, os juros continuam acima dos 6% a 10 anos. o tesouro precisa de levantar 10 mil milhões de euros no mercado no próximo ano e os cortes de pensões e salários na função pública previstos para 2014 correm o risco de ser chumbados pelo tribunal constitucional e colocar a economia pelo quarto ano consecutivo em recessão. a irlanda terá em 2014 o terceiro exercício consecutivo de crescimento.

reformas adiadas

porém, o conceito de sucesso em bruxelas é hoje apenas a conclusão do programa e o regresso ao financiamento. no início da intervenção, sucesso significava sobretudo resolver os problemas estruturais dos dois países – sanear a banca na irlanda, ter um estado menos gastador em portugal e reduzir o endividamento nos dois países. após três anos, pouco ou nada mudou.

segundo uma apresentação aos investidores feita este mês pelo tesouro irlandês, mais de 25% dos empréstimos concedidos pela banca estão em risco de não serem pagos. o malparado subiu de 20% para 25% em apenas um ano, enquanto a maioria da banca permanece nacionalizada. depois do fim da bolha imobiliária e da falência do sistema financeiro em 2010, grande parte das famílias no país deve hoje mais ao banco do que o valor da sua habitação.

em portugal, a reforma do estado, grande prioridade da intervenção, continua por fazer. o número de funcionários só foi reduzido com as aposentações, as funções do estado permanecem inalteradas e o ‘emagrecimento’ só aconteceu com as privatizações de empresas públicas lucrativas na energia e nos transportes. após 20 mil milhões de euros em austeridade nos últimos três anos, para corrigir as contas públicas, o estado português continua a gastar por ano sete mil milhões de euros a mais do que recebe.

sempre a dívida

pior, portugal e irlanda são, respectivamente, o terceiro e o quarto membros da união europeia com a maior dívida pública (131% do pib para o primeiro e 125% para o segundo). no último ano, foram os países onde o endividamento mais cresceu.

segundo dados do eurostat publicados na semana passada, a dívida pública na irlanda subiu 20 mil milhões de euros e a portuguesa 15 mil milhões, entre junho de 2012 e junho de 2013. a isto acrescem as vagas de emigração de quadros e jovens desde o início da crise devido ao desemprego. só na irlanda emigraram mais de 400 mil pessoas desde 2009, um valor superior ao verificado no grande êxodo dos anos 80. as taxas de desemprego atingem os 17% em portugal e 14% na irlanda.

a irlanda prepara-se para ser o primeiro país a libertar-se da troika, a 15 de dezembro, e portugal deseja fazer o mesmo em junho de 2014. mas a herança da intervenção externa arrisca deixar os poster boys como os estados mais endividados da europa e com uma geração inteira emigrada.

luis.goncalves@sol.pt