Salvamentos e segurança

Para efetuar missões com duvidosas possibilidades de sucesso, coloca-se por vezes em risco a vida dos socorristas.

NOS ÚLTIMOS TEMPOS Portugal tem sido palco de infaustos acontecimentos, com grande repercussão pública – e, infelizmente, todos com mortos. Foi a queda da árvore na Madeira, há um ano, foram os incêndios, foi a pedreira de Borba, foi agora o helicóptero.

O facto de as reportagens destes acontecimentos serem transmitidas em ‘direto’ pelas televisões – fenómeno em que a CMTV foi pioneira – deu a estas tragédias um impacto completamente diferente do que tinham até há meia dúzia de anos. Ler um acontecimento no jornal, ou mesmo vê-lo em diferido numa peça num telejornal, não tem nada a ver com assistirmos a reportagens em direto, em que estamos a ver as coisas ao mesmo tempo que acontecem. Há uma diferença abissal entre ver um jogo de futebol em direto e ver um resumo, já conhecendo o resultado.

 

TODOS OS ACONTECIMENTOS referidos tiveram largas horas de presença nos canais televisivos de informação, emocionando as audiências e ampliando a sua repercussão pública.

O caso do helicóptero teve a particularidade invulgar de as reportagens se iniciarem ainda antes de haver a certeza de que a aeronave caíra e de os destroços serem encontrados. Assim, houve um prolongado suspense, que se arrastou por longas horas, em que se especulava sobre o que acontecera.

E aqui uma coisa saltou à vista, que aliás tem sido amplamente discutida: o excessivo tempo decorrido entre a queda do aparelho e o início das operações de busca e salvamento. Note-se, no entanto, que não é a primeira vez que isto acontece: nos incêndios de Pedrógão houve um hiato de cinco ou seis horas (leu bem) entre o primeiro alerta de fogo e o início do combate.

 

ORA, NUMA SOCIEDADE altamente dominada pelas novas tecnologias, onde as comunicações circulam a uma velocidade alucinante, onde tudo passa a correr, como compreender que, em casos onde a rapidez poderia ser decisiva, as coisas se processem tão lentamente? Como perceber o abismo existente entre os sofisticados meios tecnológicos disponíveis e a sua aplicação prática em casos de urgência? É um mistério. Para o qual só há uma explicação: os meios de comunicação são rápidos – mas isso não serve de nada porque as pessoas que os usam são lentas ou pouco competentes.

É certo que, neste caso, o atraso terá tido pouca importância, pois os tripulantes do helicóptero terão tido morte quase imediata. Mas esta questão tem de ser devidamente investigada e corrigida com vista ao futuro. 

 

NO CASO DO HELICÓPTERO, a principal questão tem que ver com a segurança das operações de socorro. 

Diz-se que Marcello Caetano, quando foi à Cruz Vermelha visitar Salazar – que tinha entrado em coma depois de um AVC -, disse ao pessoal médico que não valia a pena pôr outros doentes em risco para salvar um que eventualmente não teria recuperação. 

Nalguns casos de salvamentos, coloca-se o mesmo dilema: até onde será legítimo pôr a vida de socorristas em perigo para salvar doentes com poucas probabilidades de sobrevivência? Não será que, aqui ou ali, os socorristas correm riscos de vida desproporcionados em relação ao que se propõem salvar? 

 

NA QUEDA do helicóptero em Valongo, a doente que foi objeto da operação de socorro até já estava ‘entregue’. A aeronave ia voltar à base. E ao que parece o piloto queria adiar o regresso, tendo em conta as condições climatéricas muito adversas. Mas, passados uns minutos, levantaria mesmo voo. Porquê? Porque as condições melhoraram subitamente? Não parece plausível. Alguma ou algumas pessoas da equipa teriam compromissos a que não queriam (ou não podiam) faltar e insistiram para apressar a viagem? Terá sido isto que sucedeu?

Uma coisa é certa: o helicóptero lançou-se no ar no meio de um vendaval – com vento, chuva forte e nevoeiro -, o que significa que se lançou à sorte. O piloto não tinha qualquer visibilidade – e é possível que, para não perder o contacto visual com o solo, tenha decidido voar muito baixo. Voando alto, perderia as referências. E esse voo baixo (que alguns populares confirmam) seria fatal: o aparelho embateu numa antena e despenhou-se.

 

AQUI, O SALVAMENTO não esteve na origem da tragédia. Esse trabalho estava feito. O motivo foi o otimismo do piloto, que admitiu ter condições para voar, ou a insistência de elementos da equipa, que tinham urgência em regressar à base. 

De qualquer modo, é sempre bom ter em mente que, para salvar hipoteticamente uma pessoa, não é legítimo pôr em sério risco a vida de várias. Se da queda do helicóptero se pode extrair alguma coisa de útil, é esse alerta às entidades envolvidas em operações de socorro: para efetuar missões com duvidosas possibilidades de sucesso, coloca-se por vezes em risco a vida dos socorristas.

É claro que esta ponderação tem de ser feita com um cuidado extremo, pois num prato e noutro da balança estão vidas humanas. Todos têm direito a socorro. Mas o risco do salvamento não pode ser superior ao da pessoa a salvar.