Vampiros da escrita

Morcegos, masmorras, túneis secretos, mitos em torno de nomes da cultura anglo-saxónica como o poeta escocês William Drummond ou o dramaturgo inglês Ben Jonson, horários muito rígidos para todas as refeições e, até, ‘vampiros’ que, como lhes compete, reagem mal à exposição solar. Tudo isto reunido num castelo construído entre meados do século XV e…

Além das peripécias já citadas – como a colónia de morcegos que ritualmente os escritores observavam todos os dias às dez e meia da noite; ou o ‘submundo’ de galerias subterrâneas, onde é “fácil imaginar o tipo de torturas que se passaram ali” -, o castelo também fica a poucos quilómetros do centro de investigação que criou a ovelha Dolly, o primeiro mamífero a ser clonado com sucesso a partir de uma célula adulta, e da Capela de Rosslyn, que ficou celebre depois de ser citada no bestseller O Código Da Vinci, do norte-americano Dan Brown, e que hoje recebe “filas e filas de turistas”.

Quando se candidatou à residência de escritores do Castelo de Hawthornden, Tiago Patrício não sabia ao que ia. Mas foi o mistério em torno da fortaleza que o motivou a concorrer. Tudo começou há já uns anos, depois de ir parar a algumas páginas na internet que reúnem informação sobre residências para escritores espalhadas pelo mundo. “Cliquei nesta, pela curiosidade de ser num castelo, e não encontrei praticamente informação nenhuma. Só dizia que era na Escócia, tinha um número de contacto e avisava para a inexistência de internet, obrigatoriedade de cumprir horários e de respeitar o silêncio”. O escritor procurou, então, mais informação através do Google e a busca foi, mais uma vez, de pouco proveito. “Nem página oficial tem. Isso torna-a quase mítica. Nos dias de hoje em que está tudo na internet, é como se esta residência não existisse”, comenta.

A altura não era, porém, oportuna para se fechar num castelo na Escócia, mas Patrício acrescentou Hawthornden à lista de residências que gostava de frequentar um dia. E “há coisa de ano e meio” ligou finalmente para a antiga residência de Drummond, “contemporâneo de Shaskepere e um dos poetas mais interessantes daquele tempo”. “Pediram-me a morada física e disseram-me que me iam enviar informação por correio tradicional”. O envelope chegou seis meses depois. Lá dentro vinha um formulário de dez páginas, que só podia ser preenchido à mão ou à máquina de escrever. O autor decidiu escrever à máquina, algo, aliás, que faz com frequência “porque o utensílio influencia a escrita e a máquina obriga-nos a ser mais concisos e mais lentos, já que não se pode voltar atrás”. Neste processo, foi assaltado por uma série de questões: “Será que temos de levar uma máquina de escrever? Será que por ser num castelo temos de andar para trás? Será que temos de nos vestir como na época medieval?”.

Ao formulário preenchido, Patrício juntou duas cartas de recomendação (redigidas à mão), excertos traduzidos de trabalho publicado e a explicação da obra que pretendia escrever – uma peça de teatro sobre a batalha que aconteceu no Canal da Mancha entre a armada de Filipe II (durante o domínio castelhano de Portugal) e a de Isabel I de Inglaterra, que ficou conhecida como a batalha de Gravelines ou a derrota da ‘Invencível Armada’, no Verão de 1588. Tudo enviado, o padrão temporal repetiu-se. Passados cerca de seis meses depois da candidatura, o escritor recebeu uma carta a informá-lo de que tinha sido aceite para a residência que arrancava meio ano depois.

Durante o período de espera, o escritor conseguiu levantar um pouco a ponta do véu sobre Hawthornden, através de uma amiga australiana que lá tinha estado uns meses antes (por ano são cerca de 48 escritores que passam pelo castelo). E hoje percebe que rejeitar a facilidade e modernidade da internet é, logo à partida, um processo de selecção. “É uma residência com bolsa e hoje há escritores que fazem disto vida, uma vez que há dezenas espalhadas pelo mundo. Se tivessem internet iam receber centenas de candidaturas, assim o número reduz logo bastante”. Mesmo assim, Patrício nunca conseguiu perceber quais são os critérios de escolha: “Dos seis havia escritores com obra editada, um repetente com 70 anos, uma rapariga que nunca publicou, uma argumentista, uma escritora de poemas para crianças e outra a criar um livreto para uma ópera”.

Perante esta dispersão, a unidade acabou por acontecer devido às regras impostas pela casa. No check in, cada autor recebeu um manual de conduta com indicações precisas sobre os horários das refeições, o procedimento para a lavandaria ou os percursos pedestres autorizados nos jardins do castelo (necessários depois de um chinês ter caído numa ravina há uns anos).

Sem internet – que Patrício guardava para a visita semanal a um ciber café a cerca de hora e meia a pé do castelo -, as noites eram quase sempre ocupadas com o visionamento de séries ou filmes que a argumentista levou como ferramenta de trabalho. Uma forma eficaz, diz, “de criar uma linguagem comum” entre os participantes. Ao ponto, até, de os ‘transportar para outra realidade’. “Um dos filmes que vimos foi um neozelandês, muito engraçado, sobre seis vampiros contemporâneos que vivem juntos numa casa em Wellington. Isto foi a meio da residência e a partir desse dia começamos todos a assumir aquelas personagens. Cada um de nós era como se fosse um zombie e aquele era o nosso castelo. Quando havia sol, algo raro, dizíamos logo ‘fecha as cortinas, estou a derreter’”.

A par destas brincadeiras – bem ilustradas no desenho feito pela poeta ucraniana Iryna Shuvalova e que aqui reproduzimos – houve bastante tempo para escrever. Tiago Patrício conseguiu ‘dar corda’ à peça ‘Invencível Armada’, favorecido pela generosa biblioteca do castelo, e engrossar o “romance enciclopédico e autobiográfico” que prepara. Aos 36 anos já há material suficiente para uma autobiografia? “Sei que é cedo, mas não é um exercício de narcisismo. Por exemplo, estive um ano e meio na Escola Naval e só desse período já tenho mais de 500 páginas escritas…”. É preciso fôlego.

alexandra.ho@sol.pt