Wikileaks

Assange é um Robin dos Bosques dos tempos modernos: rouba segredos aos poderosos para os dar ao cidadão comum.

Declaração de interesses: sou jornalista de profissão. Não a exerço porque desempenho funções políticas remuneradas. Mas conheço algo destes dois mundos que agora se confrontam no espelho do Wikileaks. Compreendo porque divergem tão radicalmente.

Listo algumas críticas: os telegramas revelados não são mediados – de facto, são. Até esta semana, só tinham sido publicados 837 de um universo de 250 mil. A selecção está a ser feita por jornais acima de qualquer suspeita. Antes, as críticas incidiram na possibilidade de a informação poder colocar a vida de pessoas em risco. Na verdade, foram as próprias autoridades militares dos EUA que reconheceram ainda não se ter registado qualquer situação desse tipo no Iraque ou no Afeganistão. Há, também, quem considere que a publicação de segre-dos compromete «a seguran- ça dos Estados». Esta objecção chega a ser comovente, já que tem origem em criatu- ras e serviços absolutamente insensíveis à segurança dos cidadãos em face dos abusos da razão de Estado.

Com uma qualquer rede wikileaks actuando em tempo real, a organização da mentira em que se fundou a ocupação do Iraque teria sido, sabêmo-lo hoje, bem mais difícil. Risível é ainda o argumento de que as notícias vindas a público «não contêm nada de novo». Se assim é, porquê a dramaticidade posta na polémica e, mais ainda, a guerra tentacular que os EUA declararam a Julian Assange? Não há exagero no qualificativo. Quem já viu a Suíça fechar contas bancárias a quem nem sequer foi julgado? Como acreditar que multinacionais de débito e crédito cortem cartões a quem paga na hora? Nesta louca história de vingança só a história de sexo sem preservativo parece normal, ou seja, saída de um livro de espionagem…

Passemos, por isso, aos bons argumentos. Eis como Francisco Seixas da Costa sintetiza um deles: «Na guerra como na paz, os serviços de ‘cifra’ procuram assegurar franqueza e discrição (…) A divulgação de centenas de milhares de documentos pelo Wikileaks configura uma quebra grave nesta relação de confiança».

Conceda-se. A narrativa diplomática, resultado de uma acumulação milenar, foi, de um só golpe, desfeita. Que a perda preocupe os diplomatas é, mais do que razoável, sensato. Restará ao meu amigo diplomata a certeza de que o ofício acabará por descobrir antídoto e adaptação. Devo, contudo, acrescentar que considero esta contrariedade coisa pequena comparada à que explica o vendaval Wikileaks. Julian Assange é um Robin dos Bosques dos tempos modernos: rouba segredos aos poderosos para os dar ao cidadão comum.

A contrariedade que o criou tem nome, chama-se poder. Ou seja, desigualdade. Gosto quando o engenho subverte a ordem estabelecida e reescreve uma história velha como o mundo.