O chefe do Governo republicano

Coube a Teófilo Braga coordenar o primeiro ministério pós-5 de Outubro, e chegou a ser Presidente num Verão. Foi um doutrinador apagado pelos homens de acção

se d. manuel ii foi o primeiro rei português a não dar a mão a beijar aos dignitários na tradicional cerimónia de 1 de janeiro, num estilo mais informal, teófilo braga (1843-1924) foi o primeiro chefe de governo, e depois fugaz presidente da república, a apanhar diariamente o eléctrico para ir despachar os assuntos políticos. proletariamente, como escreviam os cronistas da época.

raul brandão conta, nas suas memórias, que teófilo disse a machado santos, o herói da rotunda, logo após a revolução: «o senhor é como o bom sapateiro que vem entregar as botas já prontas ao freguês». o açoriano teófilo braga não foi o primeiro presidente da república, pois esse, o também açoriano manuel de arriaga, só foi eleito em 24 de agosto de 1911, depois de promulgada a constituição. mas encontrou-se a chefiar o governo provisório após o 5 de outubro, devido ao prestígio como doutrinador das ideias republicanas e sobretudo porque os tubarões políticos do republicanismo se furtaram à tarefa, preferindo ficar a controlar os ministérios.

o partido republicano era uma federação de tendências e personalidades rivais, e a efervescência revolucionária acentuou as divergências. é novamente brandão que lembra um cáustico teófilo a dizer que, «como chefe do governo provisório, fui uma espécie de guardador de perus que se limitou, sempre de caninha na mão, a levar os bichos juntos até às constituintes». e também desabafou: «nem me ouvem. sabe para o que eu estou ali? tenho lá uma campainha para tocar a reunir».

não era neutro, alinhando em geral com a tendência mais radical do republicanismo personificada em afonso costa, embora mantivesse intocada a sua fidelidade ao federalismo original, contra o centralismo de recorte jacobino que prevaleceu. o que tinha era um famoso mau feitio que desde jovem o antagonizou sucessivamente com correligionários e cúmplices intelectuais. ficou com fama de misantropo, provavelmente merecida.

ainda assim, aceitou mais a missão de ser presidente da república de transição entre maio e outubro de 1915, preenchendo o vazio criado pela demissão de arriaga.

embora se tenha envolvido no movimento republicano desde os anos 1870, o seu legado é marcante sobretudo na história da cultura e não na política. foi um dos subscritores das famosas conferências do casino em 1871 (mas rompeu com antero e oliveira martins). racionalista e ateu, foi o grande divulgador do positivismo de comte em portugal, através de revistas, cursos e conferências. acreditava numa história finalista, correndo imparável para a república. já famoso como escritor e muito influente entre a juventude universitária, em 1880 foi, com ramalho ortigão, o principal promotor das celebrações do tricentenário de camões, de que a monarquia se alheou e constituíram um momento de viragem na implantação dos republicanos na sociedade.

deixou mais de 360 obras, incluindo histórias das ideias republicanas, da literatura portuguesa, do teatro português, da poesia popular e da universidade de coimbra. é pioneiro da etnografia em portugal, embora sem trabalho de campo.

teófilo foi um infeliz desde a infância, que descreveu «atormentada» pelas más relações com a madrasta. no alvor da república, perdeu a mulher e os três filhos. isolou-se em casa nos últimos anos, escrevendo incansavelmente. uma vizinha levava-lhe o pequeno-almoço. morreu só.

frederico.carvalho@sol.pt