A armadilha do amor romântico

Aos 15, já passava os dias com o coração enfiado nos livros e a cabeça nas nuvens, alinhando poemas e cartas de amor.

já fui, como todas as mulheres, dada a esses achaques de amor súbitos e destruidores que nos deixam as palmas das mãos mais secas do que as de um trabalhador de minas fotografado por sebastião salgado, que nos tiram a fome, nos roubam o sono e não raro a alegria de viver.

enveredei cedo pelos caminhos tortuosos da paixão, possuída por essa febre triste e castradora que reduz um ser humano a um décimo das suas capacidades aos sete anos, por causa de um certo jovem da sala ao lado da minha 3.ª classe, entre estações e apeadeiros, num tempo em que o mapa de portugal ainda era ultramarino e o retrato do professor marcelo caetano nos espiava pelo canto dos seus óculos de massa iguais aos do meu pai.

o rapaz em questão era dono de uma melancolia endémica e de um belo par de olhos azuis, mas não me dava conversa, portanto a minha paixão nasceu do equívoco mais comum a este tipo de patologia amorosa – a idealização voluntária do ser amado que nos faz imaginar um admirável mundo novo que se projecta no nosso coração como um sonho realista mas que, em bom rigor, só existe na nossa cabeça.

a paixão durou um ano, durante o qual, se bem me lembro, mal troquei uma palavra com o dito jovem. e depois ele mudou de colégio, eu fui a casa de uma coleguinha e conheci um primo dela por quem me apaixonei, acho eu, porque também tinha olhos azuis. eu tinha dez anos e depois disso nunca mais deixei de estar apaixonada: amigos do meu irmão, filhos de amigos dos meus pais, irmãos mais novos dos amigos da minha irmã, um colega da escola, um rapaz do meu bairro, dois rapazes do liceu e por aí fora.

é bom dizer que eu já passava os dias com o coração enfiado nos livros e a cabeça na nuvens, alinhando poemas e cartas de amor, com a diferença de que aos 15 anos ninguém me levava a sério. de cada vez que dizia aos meus pais que queria ser escritora, eles encolhiam os ombros. de modo que me habituei a partilhar os meus sonhos e segredos com as folhas de vários diários que entretanto tive o bom senso de queimar.

ora isto das paixões foi sendo o tal denominador comum da existência, a chamada nota tónica da minha vida, de modo que ao rebobinar a vivência dava comigo a arrumar o passado não por ordem cronológica, mas por épocas de namorados. as minhas amigas iam casando e tendo filhos, enquanto eu me perdia numa qualquer paixão impossível que nunca foi uma paixão qualquer, porque era capaz de esperar por um amor impossível durante anos, se acreditasse que valia a pena.

durante décadas acreditei que o meu príncipe encantado andava por aí e esperei, às vezes com o motor de busca ligado, outras sentada à soleira como nos ensina a sabedoria oriental, caindo sempre na armadilha do amor romântico. o resultado foi clássico: acabei mais algumas vezes estendida no tapete, levantei-me e segui em frente, perdi o ideal e ganhei juízo.

e foi doendo sempre menos, comparando com os trambolhões anteriores, até porque depois dos 40 uma pessoa já não cai, só se atira ao chão, e é se quiser. armadilhas são para os ratos. em caso de praga, mais vale chamar uma empresa da especialidade.

margarida rebelo pinto