Gainsbourg

O filme de Sfar não justifica uma ida ao cinema (mais vale comprar um duplo CD: De Gainsbourg à Gaisnbarre), mas lembra-nos o último de uma galeria de génios.

Uma noite, no Verão de 1989, estou a jantar numa das mesas corridas do Vila Lisa, deliciando-me com um xerém de lingueirão, quando reparo que estou sentado ao lado de Serge Gainsbourg e de Bambou, a sua última mulher. Gainsbourg fumava Gitanes sem filtro e bebericava um copo de vinho. Tinha o ar sonâmbulo e olheirento que lhe conhecia dos filmes, das fotografias e da TV (assisti em directo ao repto que lançou a Whitney Houston: ‘I want to fuck you’), o ar noctívago e boémio que lhe grangeou a fama – e o proveito – de grande sedutor.

Esse Gainsbourg que ali estava, com o peso enorme do mito, e que se esfumou na noite, não o reconheci em Gainsbourg – vida heróica, o filme de Joann Sfar que pretende ser uma ilustração da vida do último grande ícone da canção francesa, e que, como quase todos os biopic, esbarra nas duas maiores armadilhas do género: tentar resumir uma vida em duas horas, e encontrar o actor que nos faça acreditar que estamos perante o original. Éric Elmosnino, como Laetitia Casta e os outros fazem o que podem para nos convencer que são quem representam, mas quem os conheceu, ao menos do ecrã, sabe que não são. Sfar bem tenta transmitir-nos o fascínio pelo último enfant terrible da canção francesa, o que levou mais longe a provocação sexual (’Je t’aime, moi non plus’) e política (’Aux armes’, etc), numa França que, depois de Maio de 68, já não se escandalizava com nada. Fica uma sucessão de vinhetas, de onde não se extrai a lógica de uma vida, o génio do artista, a razão do mito.

Gainsbourg era um enorme poeta (como foram Brassens, Brel e Ferré), um dos que melhor brincou com a língua (ao seu nível, talvez só Queneau), um compositor inspirado e um provocador, um continuador do que foi a boémia artística de Saint Germain e Montparnasse desde o princípio do século. Um dia, durante uma viagem em que ouvia ‘L’Anamour’, uma amiga confessou-me, com mágoa, que não era sensível à poesia. Propus-lhe que prestasse atenção à quadra que estávamos a ouvir, se queria perceber onde mora o génio dos poetas: ‘J’ai cru entendre les hélices/d’un quadrimoteur mais hélas/ c’est un ventilateur qui passe/ au ciel du poste de police’.

O filme de Sfar não justifica a ida ao cinema (mais vale comprar um duplo CD: De Gainsbourg à Gainsbarre, que podemos ouvir vezes sem conta), mas tem a vantagem de nos lembrar que ele foi o último de uma enorme galeria de génios da cultura francesa, que hoje repousam no Panteão ou no Pere Lachaise.

A razão desta decadência é que os artistas já não têm nada para transgredir. O fim da civilização que a minha geração conheceu bate-nos à porta. Se não acreditam, pensem só que, hoje, os jovens vêm para a rua protestar por Sarkozy ter mudado a idade da reforma dos 60 anos para os 62.

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