Das duas uma

Artur Jorge (AJ) decidiu vender algumas peças da sua colecção de arte, que foi adquirindo ao longo dos anos, especialmente os que passou em Paris como treinador do Matra-Racing e do PSG, nos anos 90.

para isso, a christie’s organiza em dezembro um leilão, mas, entretanto, aj teve a feliz ideia de expor as peças no ccb, permitindo aos curiosos apreciar as obras que, de outro modo, nunca teríamos oportunidade de conhecer.

artur jorge foi um jogador de grande qualidade, um ponta-de-lança com raro sentido do golo, com uma habilidade (ficaram célebres os seus pontapés-de-moinho) e uma elegância invulgares. aj destoava dos jogadores do seu tempo, recrutados nas classes mais pobres da população: estudante em coimbra, licenciou-se em germânicas, publicou um livro de poemas (o vértice da água) e tirou um curso de treinador na antiga rda. nada disto era habitual num jogador de futebol. eu próprio, em 1971, o desafiei para ser o actor principal do meu primeiro filme, perdido por cem, o que não se concretizou pela incompatibilidade entre as suas responsabilidades profissionais e as exigências das filmagens.

depois, optou pela carreira de treinador; e nos primeiros anos, no fc porto, onde sucedeu ao mítico pedroto, ganhou tudo o que havia a ganhar, nomeadamente a primeira taça dos campeões europeus para o clube, em viena, em 1987. após duas passagens por paris, treinou o benfica entre 1994 e 96, e aí revelou o pior de si mesmo: destruiu uma excelente equipa, deixou o clube em cacos e acelerou o seu declínio nos anos seguintes, tornando-o vulnerável ao populismo de vale e azevedo, que acabaria preso e com o clube à beira da ruína.

o que é surpreendente neste homem que vê os jogos de futebol ao som de música clássica, escreve poemas e colecciona obras de pintores modernistas é a vacuidade do discurso e a sua total incapacidade para se fazer entender. ao longo de uma carreira cheia de títulos, aj não produziu uma ideia, uma linha, uma teoria, uma reflexão sobre o seu métier e a sua experiência. ainda recentemente, a propósito da sua colecção, onde se esperava um comentário sobre cada peça que nos ajudasse a perceber os seus gostos, aj perdeu-se num discurso incompreensível e disléxico, frustrante para os amadores de arte moderna.

a escolha dos autores é de luxo (picasso, dali, max ernst, matisse, picabia e muitos outros), mesmo se as peças são modestas (a maioria desenhos, esboços) e de pequenas di-mensões: uma escultura como a esponja azul de yves klein metida numa redoma, por exemplo, não ocupa mais espaço do que uma jarra, e percebe-se mal que aj diga que se desfaz dela por falta de espaço.

a iniciativa de expor é de louvar, mas é pena que a desastrosa incapacidade de comunicar de aj nos tenha privado de algumas informações e reflexões sobre os autores e as peças que, num dado momento da sua vida, escolheu para lhe fazer companhia.

apvasconcelos@gmail.com