durante alguns dias vivi o que estudei no liceu e a que sempre aspirei, a aurea mediocritas, ocupando os meus dias a escrever, a ler e a usufruir desse prazer pouco comum a uma citadina como eu que é a contemplação da natureza.
a quinta das lágrimas, outrora quinta do pombal perto do paço da rainha, o mítico lugar onde d. inês de castro viveu com d. pedro o último ano da sua vida antes de ter sido degolada por ordem de d. afonso iv, é um lugar envolto em mistério e beleza; as fontes, os jardins e a mata circundante ao paço fazem deste lugar um dos refúgios mais românticos de portugal. o mito daquela que nunca foi rainha e que o povo detestava, encontra-se aqui recuperado, pois é apenas cinco séculos mais tarde que inês é elevada à condição de heroína sacrificada, versão reforçada pelo romantismo e pela crescente popularidade dos chamados romances de cordel.
às vezes penso que o grande defeito de inês era a beleza e que foi justamente aí que se iniciou a sua desgraça. a dama do colo de garça, como lhe chamaram historiadores e poetas, sabia ler e escrever, ao contrário da esmagadora maioria das mulheres do seu tempo, mas nem por isso deixava de obedecer aos cruéis desígnios aos quais estava sujeita qualquer mulher na idade média, a idade das trevas, da peste e do medo, das guerras constantes e da escuridão.
o que podia fazer uma mulher nesses tempos além de tentar proteger-se dos homens? para que serviam as mulheres se não para dar filhos varões aos homens e lhes assegurar a descendência? e como viviam o amor se os homens as viam como objectos, moeda de troca, como aconteceu a tantas infantas portuguesas que foram objecto de negócio para comprar a paz ou conquistar a confiança dos reinos vizinhos?
a lenda de inês, cujo amor feliz com d. pedro enfurece o rei e alerta os seus conselheiros para o perigo iminente dos irmãos castro, que usaram a irmã para ganhar mais influência junto do futuro rei de portugal, é afinal muito parecida com a de ana bolena e henrique viii de inglaterra; dois homens coléricos e impulsivos, considerados loucos por muitos dos seus contemporâneos, põem em causa a segurança e a estabilidade dos seus reinos por causa de duas mulheres belas e nobres, manipuladas pelas próprias famílias e usadas como armas de influência.
e ambas acabam decapitadas, vítimas de intrigas de conselheiros reais. ao contrário de henrique viii, que determina a morte de ana, d. pedro perde a sua amada por ordem de seu pai, facto que conduz os dois à guerra. henrique voltará a casar mais quatro vezes; d. pedro não mais voltará a pronunciar votos matrimoniais.
moral da história: quando existe uma mulher bela que faz com que os homens percam a cabeça com ela, nada mais simples do que usá-la para alcançar objectivos e, depois, deixar que venham outros cortar-lhe a cabeça para resolver os problemas da nação. amor com poder se paga. e o poder vence sempre. ou quase sempre.
margarida rebelo pinto