‘Governantes andaram a camuflar a situação’

As críticas ao poder político e a preocupação com a crise social e económica que o país atravessa são uma constante no discurso do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Depois das chamadas de atenção que fez na assembleia plenária dos bispos, esta segunda-feira, D. Jorge Ortiga lança, aqui, mais um apelo aos políticos: «Esqueçam…

como se comportaram o governo e o psd na discussão do oe?
há muito tempo que me parece que há uma atenção exagerada ao partido pelo partido, à carreira partidária. e nem sempre os partidos têm dentro de si a responsabilidade do bem comum. este foi um dos momentos em que isso aconteceu, quando o que deveria ter havido era um consenso no que é essencial. porque os políticos têm de ser capazes de interpretar e de entender as necessidades do povo. e estar sempre ao serviço dele.

parece que estamos mesmo à beira da bancarrota?
essa é uma questão complexa. o que sei é que o povo não foi devidamente informado, e na altura própria, por parte de quem nos governa. dá-me a impressão que se caminhou quase no engano, tentando camuflar realidades que todos conheciam. os problemas existiam e não se queria fazer ver que existiam.

pensa que era mais útil haver eleições para mudar a situação política?
nesta altura seria complicado, tendo em conta as eleições presidenciais e a credibilidade do país no mercado estrangeiro. mas espero que ainda se vá a tempo de acordar.

e a possibilidade de um governo de iniciativa presidencial?
quando tudo isto passar, talvez seja mais fácil dizer que essa teria sido a melhor solução. neste momento, não sei. mas estou convencido de que o presidente da república (pr) foi deixando alertas em várias ocasiões, que, porventura, não foram entendidos.

muitos católicos ficaram desiludidos por o pr ter deixado passar o casamento gay. a sua opinião sobre cavaco também mudou?
não. evidentemente que, naquele momento, pensei que teria sido preferível que o pr fosse coerente até ao fim. a coerência teria sido oportuna neste tempo que estamos a viver, que é de ausência de valores. precisamos de alguém que nos chame a atenção para essas referências.

recentemente, foi lançada a ideia de uma candidatura presidencial católica.
sou avesso a colocar o nome católico ou cristão seja no que for. acho que a vocação e a missão dos cristãos é estar no meio do mundo. não precisam de rótulos.

mas faz sentido para si esta iniciativa política?
que haja um grupo cristão que procure mostrar a validade da doutrina social da igreja e que, em nome dessa doutrina, possa fazer convergir algumas iniciativas, sem dúvida que talvez seja uma das carências da nossa sociedade. se os princípios fundamentais da doutrina social da igreja fossem devidamente assimilados pela nossa sociedade, evitar-se-iam todos estes exercícios motivados pela corrupção.

parece-lhe que a candidatura de cavaco silva não preenche plenamente esse desígnio?
ao olhar para o passado do pr, vejo que desempenhou a sua missão dentro daquilo que a constituição lhe permite e também numa linha de defesa dos valores e interesses de todos. mas não sou eu quem vai pronunciar-se, porque a missão dos bispos é anunciar a doutrina e não imiscuir-se na política.

os 1,8 milhões de pobres existentes em portugal são um problema prioritário para o governo?
deveriam ser o problema, por excelência. mas não é isso que eu vejo.

tudo indica que a crise será pior em 2011. as instituições da igreja têm uma estratégia definida para enfrentar a situação?
nós, igreja, não podemos substituir o estado. mas temos uma vantagem grande, que é a proximidade às pessoas. vamos continuar a alertar os cristãos para que olhem e sejam capazes de agir com o coração. mas a igreja está a reorganizar-se naquilo que são os seus movimentos tradicionais, como a cáritas ou as conferências vicentinas. e há também associações cristãs de empresários que prepararam um fundo de solidariedade. seja como for, as instituições começam a sentir grandes dificuldades, principalmente se estiverem a realizar obras. se for aprovada a medida que acaba com a devolução às instituições do iva que lhes é cobrado, como pretende o governo, haverá muitas que não conseguirão pagar as dívidas.

à igreja não cabe também um papel de chamada de atenção aos políticos?
uma das coisas que me parece ser positiva é que, a propósito de toda esta crise, se começou a falar de números: de quanto determinadas pessoas ganham em assessorias e fundações. pensava-se que estas coisas não existiam. mas o papel fundamental da igreja é o anúncio da fraternidade e a denúncia das desigualdades.

receia um aumento da criminalidade?
esta situação está a provocar exclusão social – ela está aí, patente. e, quando existe exclusão, a agitação social acontece e todos os problemas conexos podem surgir.

que conselho pode dar aos portugueses para os ajudar a enfrentar melhor o que aí vem?
perante todo este horizonte demasiado sombrio, é preciso que cada um seja capaz de ir reagindo e lutando. que acredite que sozinho não faz nada, é preciso fazer com outros. e, por fim, é preciso que todos participem (nas eleições), quando formos chamados a fazê-lo – para que cada um possa dar a sua sugestão e defender a sua ideia. todos os portugueses devem exigir do estado aquilo a que têm direito.

e aos políticos?
deveriam viver intensamente a sua vida preocupados com o povo português. e reflectir, dialogar, confrontar-se com situações concretas, correr riscos, ver para além do pessoal e do pequeno grupo partidário.

como vê o extenso programa das comemorações do centenário da república?
acho que, até agora, se conseguiu muito pouco em relação à necessidade de as pessoas reflectirem sobre o que é a república e os seus valores democráticos. mas não tenho dados sobre se as comemorações poderiam ser feitas com mais ou com menos dinheiro.

a ida do papa a espanha foi contestada por causa da despesa do governo espanhol com a visita.
aconteceu o mesmo em portugal. houve aqui uma reacção do mesmo género. mas é preciso não esquecer que a visita do papa é uma visita de um chefe de estado. a cimeira da nato, que vai agora realizar-se em lisboa, também vai com certeza provocar despesa.

acha que, no próximo ano, voltaremos a discutir questões fracturantes como a adopção por homossexuais?
se isso acontecer, lamento. fazê-lo seria distrairmo-nos do que é essencial. e é isso que me parece que acontece normalmente no parlamento: muda-se de assunto para fugir ao que é essencial.

em períodos de crise, tendem a ganhar importância organizações secretas como a maçonaria.
quando falei em convulsão social, o que isso gera normalmente é o princípio do salve-se quem puder e como puder. não tenho dados sobre esse fenómeno entre nós, mas é provável que isso esteja a acontecer porque as pessoas procuram defender-se.

está resolvido o conflito com as misericórdias?
a cep está a analisar o assunto e a dialogar com a união das misericórdias portuguesas. acredito que o diálogo triunfará.

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