Das duas uma

Não é muito comum exibirem-se documentários nas salas de cinema. Inside Job é uma excepção.

houve os documentários de michael moore que, nalguns aspectos (a denúncia da imoralidade da américa e dos métodos do capitalismo deixado à solta), podem ser comparados com o de charles ferguson. mas, ao contrário de moore, um anarquista radical, ferguson não parece contestar a economia de mercado nem as virtualidades da democracia americana. o que ele critica é o domínio de wall street sobre a casa branca, a infiltração dos lóbis na administração e a rede de cumplicidades promíscuas entre interesse privados e interesse público. numa palavra, o que ele nos diz é que, com o fim da ameaça soviética, o capitalismo enlouqueceu.

não cabe no espaço desta coluna uma análise à demonstração de ferguson. o documentário, feito com uma militância que não dispensa o rigor, é claro, instrutivo e eloquente. nada será como dantes nas nossas sociedades depois deste regabofe de impunidade que custou aos americanos vários triliões de dólares e ao mundo em que nos habituámos a viver uma crise planetária, que veio pôr em causa a sobrevivência do modelo de liberdade e prosperidade em que assentou o mundo ocidental até finais dos anos 80.

li muito sobre esta ‘crise’ que qualquer espírito avisado teria previsto, quando os liberais começaram a exigir o afastamento do estado como regulador e a impor o free trade sem o fair trade. «it’s the economy, stupid!» é talvez a frase que define essa viragem fatal que nos conduziu a uma imparável catástrofe. curiosamente, foi um livrinho de três professores da faculdade de economia da universidade de coimbra (júlio mota, luís lopes e margarida antunes), a crise da economia global, que me ajudou a perceber a importância da ofensiva dos republicanos para eliminar a lei glass-steagall (que regulava, desde roosevelt, a economia americana), e que, desde a era reagan/thatcher, abriu caminho à desregulação dos mercados financeiros.

é também isso que nos demonstra, com um rigor cartesiano, o documentário de ferguson: o colapso dos reguladores e dos supervisores, infiltrados pelos interesses da banca e dos seguros, a venalidade das agências de rating, o poder obsceno dos lóbis (cinco lóbistas para cada congressista), a corrupção das universidades. ferguson, como bom americano, acaba com uma imagem da estátua da liberdade e uma mensagem de esperança no voluntarismo dos cidadãos e na emergência de uma nova geração de políticos honestos. mas é uma proclamação idealista. minutos antes, ele havia-nos mostrado que os mesmos criminosos e os seus cúmplices, que destruíram a vida de milhões de cidadãos da classe média e minaram a confiança na democracia, não só ficaram impunes como estão agora no governo obama. ao contrário do que ferguson tenta fazer-nos crer, o que ele nos mostra não deixa muita margem para a esperança.

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