Das duas uma

O filme que vimos uma dezena de vezes (não exagero), cujas réplicas repetíamos no café e nas longas viagens a pé à saída do cinema, foi ‘Gangsters Falhados’, de Mario Monicelli, o cineasta que tinha assinado os melhores filmes do genial Totó.

na passada segunda-feira, por volta das nove da noite, uma noite gelada e chuvosa, mario monicelli estava sozinho num quarto do hospital san giovanni, em roma. tinha 95 anos, estava quase cego e sofria de um tumor na próstata.

ninguém pode saber o que pensou no instante em que se levantou, se dirigiu para a janela, que abriu de par em par, e saltou para a rua. o que é certo é que preferiu dispor livremente da sua vida e furtar-se a uma decadência solitária, sofredora e sem préstimo, no meio de uma itália há muito entregue nas mãos de um clown perigoso, que é o que é berlusconi, e corrompida pelas emissões diárias das seis estações de televisão que ele possui ou controla.

o homem que mais contribuiu, nos gloriosos anos do pós-guerra e até meados dos anos 70, para fazer rir os italianos das suas próprias misérias, tinha visto partir dino risi, fellini, totó, suso cecchi d’amico, marcello mastroianni, vittorio gassman e tantos outros que, com ele, tinham ajudado a criar essa extraordinária aventura que foi o neo-realismo.

no final dos anos 50, quando a minha geração começou a ver no cinema a arte do seu tempo, todas as semanas havia uma obra-prima para descobrir: eram os anos em que truffaut e os seus amigos nos haviam revelado a beleza do cinema americano, ao mesmo tempo que os mestres italianos atingiam a maturidade e que surgiam em frança os primeiros filmes do que viria a ser a nouvelle vague, uma época tão rica e exaltante como deve ter sido a renascença italiana.

mesmo com as limitações da censura, que proibia muito do cinema europeu que se fazia e retalhava a maioria dos filmes que condescendia em deixar passar, muito do cinema italiano, apesar de dominado pela esquerda, chegava até cá. em 1959, enquanto esperávamos poder ver o filme que rossellini tinha ido fazer à índia, tínhamo-nos extasiado com o grito, de antonioni, julieta dos espíritos, de fellini, e noites brancas, de visconti. mas o filme que vimos uma dezena de vezes (não exagero), cujas réplicas repetíamos no café e nas longas viagens a pé à saída do cinema, foi gangsters falhados (i soliti ignoti), de monicelli, o cineasta que tinha assinado os melhores filmes do genial totó, e com os quais eu aprendi, ao mesmo tempo, a rir-me de tudo e a falar italiano.

eram filmes que, no portugal salazarista, rasgavam horizontes, que nos davam um sentimento de liberdade sem limites, que nos garantiam que o mundo podia ser mais justo. hoje, em que a europa agoniza e em que os filmes, há muito, perderam o sentido, a morte voluntária de monicelli é um adeus final a uma época gloriosa, um epitáfio por tudo aquilo em que acreditámos. mas, mesmo que tenha sido um gesto de desespero, foi a última forma que ele encontrou, como nos filmes que fazia sobre as desventuras pícaras dos pobres diabos, de ser fiel a si próprio: um acto supremo de liberdade.

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