Das duas uma

‘A Última Missão’ faz uma reflexão profunda sobre os sentimentos com que se deparavam aqueles que tiveram de se afastar da pátria.

sempre me impressionou a má relação que nós, portugueses, temos com a memória. a falta de grandes ficções – romances, filmes –, mas também de memórias dos protagonistas dos episódios mais agitados e controversos da nossa história, sempre me intrigou. dir-se-ia que queremos esquecer em vez de lembrar, ocultar em vez de mostrar, como se tivéssemos medo da verdade ou, pior ainda, de nos confrontarmos com as ambiguidades e as contradições de que a vida dos homens é feita e de que a história não pode deixar de dar conta.

curiosa e felizmente, a guerra colonial (ou do ultramar, conforme a perspectiva) começa a estar bem documentada. mesmo se o cinema a esqueceu, existem hoje alguns romances e memórias escritos por protagonistas que se recusaram a deixar morrer a memória do que viram e viveram. dentro desse lote de testemunhos, a última missão, de josé de moura calheiros, que acaba de ser publicado, é um testemunho extraordinário do que foi a sua experiência em três comissões em áfrica, como comandante de companhia de páraquedistas, nos três principais palcos de guerra – angola, moçambique e guiné. moura calheiros não se limita a ser um cronista – escrupuloso e exaustivo – do que foram os combates, as emboscadas e o dia-a-dia dos militares; oferece-nos uma reflexão profunda sobre os sentimentos com que se deparavam aqueles que tiveram de se afastar da pátria: o medo e a saudade, a dúvida e a culpa, e, no caso dos chefes, a necessidade de tomar decisões sem rede, «quando nada havia entre mim e deus, como ele diz, a não ser a minha consciência»: enterrar os mortos ou tratar dos feridos, prosseguir a marcha ou voltar para trás, como durante os dramáticos episódios da investida sobre guidage.

com obsessivo rigor e sinceridade, moura calheiros dá-nos conta das suas dúvidas, da progressão da descrença pelo contacto com o meio universitário quando vinha a lisboa, pelo cansaço e exaustão dos que combatiam na frente e que, por espírito de sobrevivência mas também por brio militar, continuaram a dar o melhor de si próprios, com um admirável sentido de solidariedade e de camaradagem, com uma coragem e um espírito de sacrifício extraordinários.

mas a última missão é também o relato de uma aventura exemplar. 35 anos depois, integrado numa missão da liga dos combatentes, o autor decide voltar à guiné para resgatar os cadáveres de três soldados mortos em combate durante o cerco de guidage, em 1973, e cujos corpos foram inumados em cemitérios improvisados, sem que os seus familiares os pudessem chorar e sem que as suas campas dessem testemunho da sua passagem pela vida. esse sentimento de que teria que dar um epílogo, ainda que simbólico, à sua missão como militar é o que faz deste livro – e desta aventura – uma experiência única e exemplar. é altura de enterrarmos os fantasmas do passado e tratarmos das feridas, com honra, compaixão e justiça.

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