A candidatura da Telecinco surpreendeu. Como conseguiram manter segredo?
Como se mantém uma dúzia de portugueses calados? Milagre. No dia em que fomos levar a candidatura à Entidade Reguladora de Comunicação (ERC), levantei-me e fui correr para o computador ver os jornais. Ia para Lisboa com o credo na boca. Era bom demais para ser verdade.
Estão confiantes em ganhar à ZON ?
Já não temos idade para fazer coisas de putos. Há pulsões que são mais fortes do que o acreditar. É como nos momentos do casamento em que o celebrante diz fale agora ou cale-se para sempre. É o derradeiro canal hertziano, digital, em alta definição, que Portugal pode ter. E depois de saber o que a concorrência se preparava para fazer… Um canal sem redacção, sem um jornalista. Para mim a espinha dorsal de um canal de televisão é o telejornal. A ZON não tem, vai comprar à concorrência. Então para que nasce um canal se não vai fazer concorrência? Depois, a linha de programação ia socorrer-se das sinergias com a TV Cabo. Ia buscar séries e filmes que já tinham passado, a troco de publicidade. Isto para nós significou um abuso de um bem público. Os canais de televisão não pertencem ao sr. Balsemão nem aos espanhóis da Prisa. São um bem público. Resolvemos juntar-nos.
Para quem esteja de fora, dir-se-ia que Emídio Rangel viu a sua proposta rejeitada pela ZON e decidiu avançar com a sua filha, Ana Rangel.
É legítimo. Eu nego que seja isso mas não condeno quem pense assim… É um raciocínio lógico.
Se o vosso projecto é bom e o da ZON é mau, por que interpuseram recurso?
No dia em que se entregou a candidatura, a ERC permitiu consultar durante 30 minutos o outro projecto. Os nossos juristas foram direitos a dois pontos que não cumpriam os requisitos do concurso. No plano de equipamento técnico a resposta estava em branco; o segundo ponto é a entidade deles: PT, ZON, quem? A empresa era ‘a designar’. Os nossos juristas entenderam que estas falhas são suficientes para a ERC não aceitar a candidatura.
Neste momento de crise é preciso uma grande dose de credibilidade para poderem concorrer.
Como é que neste momento de contracorrente vai nascer um grande jornal diário, que se quer bater? Como é que o SOL continua a subsistir contra ventos e marés? Isto faz-se na vida, o caminho faz-se a caminhar. Estamos seguros dos apoios e quando fizemos contas percebemos que o nosso break-even, aquilo de que precisamos para sobreviver nos primeiros três anos, seria possível de conquistar com a grelha imparável de programação que vamos apresentar. A nossa grelha é estar um degrau acima do que existe em todas as áreas de uma televisão generalista.
Já disseram que não há telenovelas mas, por exemplo, como fazer diferente no desporto quando há três canais só de desporto?
Não vou dar as nossas receitas. Alguém me explica por que é que se vai entrevistar um treinador na véspera do jogo à espera que ele não diga sempre a mesma coisa? Facilmente vemos que o jornalismo televisivo se foi amodorrando. Sobretudo nas agendas autofágicas: a rádio dá uma notícia inédita de manhã, já sei que à noite vai ser igual no telejornal. Esta rotina compraz-se em acompanhar todos os líderes políticos em todos os passos. O líder A vai visitar um mercado e vão as televisões atrás. E depois sai do mercado a dizer que não gosta do Governo. E todas as televisões põem isto como se fosse notícia. Não é. Basta! E porque se põe no ar? Por compromissos políticos, para não afrontar os poderes. Nós não vamos ser isto.
Voltamos a ter Telejornais com duração de meia hora?
Já entramos em pormenores de grelha que não posso dizer. Agora outro jornalismo, sim. E sobretudo furar as agendas monocórdicas…
Não ser pé de microfone.
Exacto. Houve tempos em que se fez muito bom jornalismo televisivo. Não vamos inventar nada, mas regressar a tradições tão honrosas como o princípio da SIC e quando se inaugurou o Canal 2 da RTP com a Informação 2, que deu um safanão no jornalismo televisivo em Portugal.
Mas não é um regresso ao passado?
Não. Assim como foi possível fazer então, será possível fazer agora, na modernidade. Queremos gente maioritariamente jovem enquadrada por cabelos brancos, o que vai faltando nas redacções. Os patrões estão a despedir os mais velhos porque são mais caros…
Numa entrevista recente disse que a censura está de volta.
Não praticamos um jornalismo livre. Longe disso. Tenho dados que o processo Telecinco não está a ter tratamento informativo igual em todos os media. Há uns que já provadamente nos estão pura e simplesmente a desconhecer por relações ou afinidades eventuais com a concorrência. Isto não é jornalismo livre. Mas daí… não me lembro de nenhuma época em que o jornalismo se tivesse praticado livremente. Rapidamente saímos da ditadura e da censura do Estado Novo para a ditadura e a censura do Partido Comunista. Eu fui expulso do Diário de Notícias.
Foi na altura de José Saramago na direcção?
Era subdirector. O director era Luís de Barros, jornalista do PCP. Mandou-me chamar, Saramago estava num canto, não me falou. E disse-me que ia haver um plenário de trabalhadores em que iriam sanear 16 pessoas. Era um puto, tinha uma filha e achei que ser saneado era muito perigoso. As comissões de trabalhadores tomaram conta do país e quando uma pessoa era saneada de uma fábrica de bolachas não entrava na fábrica de pneus. Hoje não me recrimino. Mas é tão fácil dizer, ‘ah! se fosse hoje faria doutra maneira’. Escrevi uma carta a pedir a demissão, porque senão era preciso atestados a dizer que não era fascista. Viveram-se tempos de terror. Apesar de tudo, sou a favor do 25 de Abril.
Mas em que medida é que estamos a trabalhar sob censura?
Não acredito que hoje um jornalista que queira fazer um trabalho de investigação que envolva custos, deslocações, tempo, tenha facilmente meios de investigação por parte dos editores e administradores. Isto é uma forma de censura. Não é ideológica nem política, é económica. Como consegues garantir- -me que o meu colega que é enviado para o Afeganistão tem de enviar, nesse mesmo dia, crónicas de rádio, escrever para o jornal e dar uma perninha para a Lusa e fazer um bom trabalho?
Está a caminho dos 65 anos. O que o faz correr para a televisão?
Se parar morro.
Mas tem uma série de actividades.
O que me faz falta na TV não é o momento da entrega da mensagem, estar em frente da câmara. O que me faz falta é o trabalho de preparação, de planeamento e de criação. O meu Acontece era preparado a três momentos: um primeiro de reuniões com consultores; um segundo para marcar equipas de reportagem para a semana; e o terceiro momento, o do próprio dia, a marcação das reportagens do dia seguinte e o planeamento do alinhamento do próprio dia.
O Acontece vai acontecer outra vez.
Agora já o posso dizer, é verdade. Claro que não se repetem receitas. O meu novo Acontece vai ser outra vez uma novidade tão grande como quando apareceu. O Acontece é um telejornal dedicado a assuntos culturais. O formato é que vai ser inédito em Portugal. Só estou à espera de entrar em estúdio amanhã!
Houve reacções políticas sobre o quinto canal. Fernando Rosas, do BE, disse que abrir um canal não é como abrir uma padaria e que é um erro estratégico. E Luís Campos Ferreira, do PSD, disse que o quinto canal não assegura a pluralidade.
Ambas têm razão de ser. Não concordo com Campos Ferreira. O que quererá dizer é que fortalece a concentração dos poderes existentes porque quanto menos publicidade, menos dinheiro, mais tentações de fusões. Se calhar Portugal é como aquelas famílias que têm pouca massa, três filhos, e um dia aparece a mulher, vinda do consultório médico a dizer que engravidou outra vez. Mas a senhora engravidou e vamos ter a criança. Vamos tratá-lo como um filho bem-vindo.
E não devia o filho varão abdicar da publicidade?
O dr. Balsemão defende as suas damas, e uma delas é obviamente uma televisão de serviço público sem publicidade. No lugar dele faria exactamente a mesma coisa. Agora mostrem-me qual é a televisão de serviço público que consegue sustentar-se com a percentagem do orçamento de Estado que a RTP tem. Não se pode querer tudo. Se limpamos a RTP de publicidade tenho, como cidadão contribuinte, de pôr mais dinheiro do meu bolso. O que é perverso no serviço público não é haver publicidade, é o director de programas concorrer à procura de audiências para ter publicidade. Também preferia ver a minha RTP – ainda lhe chamo minha – muito mais de serviço público do que na realidade está a ser. Mas a verdade é que se a RTP não fizer um Preço Certo não tem publicidade. E se não tiver publicidade os senhores políticos vão dizer que não se vai gastar dinheiro numa televisão com meia dúzia de telespectadores. É uma pescadinha de rabo na boca.
Entrou no jornalismo após ter desistido do curso de Direito.
Fui um bom aluno até ao quinto ano. Numa prova oral perfeitamente satisfatória sou chumbado pelo professor Oliveira Ascensão. Fiquei tão ofendido e indignado que fiz uma jura em como não voltaria a subir as escadas da Faculdade. Estava numa residência universitária boa, com bons contactos, e o ministro Franco Nogueira telefonou no dia seguinte ao director do Diário de Notícias. O velhinho Augusto de Castro chamou-me e mudei do Direito para o Jornalismo.
Grande cunha.
Estava na residência do Colégio Universitário Pio XII, onde conheci o meu querido amigo Eduardo Marçal Grilo, o António Monteiro, o actual bispo do Porto…
Lembra-se do primeiro trabalho como jornalista?
Como se fosse ontem. Foi um desastre de automóveis no cruzamento da Av. da Liberdade com a Alexandre Herculano. O chefe de redacção, o João Coito, disse ao contínuo para me mandar lá. Tomei nota das matrículas e tudo. Depois fiz polícia, bancos de hospital, a feira de agricultura do Ribatejo, todas as viagens do Presidente…
Foi uma boa escola?
Sim, como O Século era uma boa escola. O Século batia-nos nos correspondentes por todo o país, que normalmente eram os barbeiros. Telefonavam a dar as notícias e depois recebiam um tostão ou dois por notícia publicada. O DN era uma boa escola porque tinham tempo para nos ensinar. Só com a televisão aprendi a entrevista, para mim a arte mais nobre do jornalismo. Em Portugal são muito poucos os que a fazem.
Qual foi a mais importante que fez?
A que fiz a Samora Machel foi a minha maior aventura jornalística. Nas vésperas da primeira visita de Estado do Presidente moçambicano a Portugal, em 1983, cria-se um movimento dos chamados retornados, que anunciou fazer uma manifestação no aeroporto contra Samora Machel. Este fez saber que se isso acontecesse não chegaria a sair do avião e perder-se-iam anos de esforços diplomáticos. O Governo português chamou o presidente da RTP e pediu para se fazer uma entrevista. Aquele homem era tão comunicativo e autêntico que as pessoas iriam gostar dele. Foi a tarefa profissional mais difícil. A última pergunta que faço é: ‘Como nos entendemos, sr. Presidente?’ Ao que responde: ‘Em português nos entendemos, na minha língua, a de Camões’. No dia seguinte não houve manifestação.
Anos antes tinha regressado a Moçambique, durante a tropa.
Correu pessimamente. Quando interrompi os estudos a tropa foi-me apanhar estava eu no DN. Em Mafra fiquei com a especialidade de Acção Psicológica. Fui mandado para o cu de Judas, numa aldeia em Tete. Saí daqui muito triste. Quando me apresentei no quartel-general em Nampula, alguém já tinha feito saber ao general Kaúlza de Arriaga que ia um jornalista profissional. Era um general à antiga. Tinha mandado redecorar o palácio, tudo atapetado de azul-escuro, um luxo, era o grande marajá. Muitíssimo simpático, recebeu-me. De burro não tinha nada: criou um gabinete de informação e meteu no bolso dois jovens jornalistas, este que aqui está, e o Mário Crespo. Saiu-me a sorte grande. Os oficiais que trabalhavam perto dele tinham direito a apartamento, carro e motorista. Que fazia eu? Levava os jornalistas para as frentes de guerra. Foi uma guerra de luxo.
Até que…
Até que um dia, no regresso a Nampula, fez-se um desvio no avião para ir buscar o ministro do Exército. Estava cansado e adormeci na minha cadeira, mesmo ao lado da porta (que não é porta). A alturas tantas, o furriel acorda-me e diz que já chegámos. Tirei o cinto e caí porque o avião ainda não tinha aterrado. Estatelei-me em frente ao general Kaúlza, que aguardava o ministro na passadeira vermelha, e parti os ossos todos da perna esquerda. O ortopedista estagiário que me atendeu no hospital deu ordens para preparar a amputação. A minha sorte é que andava por lá um ortopedista chamado Fernando Freixo Osório, que gostava muito da sua profissão e fazia revista ao hospital todos os dias. Ele tirou o curso na Alemanha, odiava Salazar e o regime e veio passar férias a Portugal. Chegou à fronteira, a PIDE deitou-lhe a mão e foi enviado para Moçambique. Operou-me e, à medida que o fazia, parava e fotografava-me. Salvou-me a perna. E a minha guerra acabou-se 11 meses depois de ter chegado. Tive dois anos de operações e reconversões, tudo lá. Sou deficiente físico das Forças Armadas.
Foi por causa dessa ligação a Kaúlza que o quiseram sanear do DN?
Foi por causa dessa ligação que me quiseram dar um tiro. No dia da assinatura da independência de Moçambique, o ministro da Informação, José Luís Cabaço, que viveu comigo na mesma rua, disse aos jornalistas que se eu alguma vez fosse a Moçambique tinha uma bala à minha espera.
Então e o saneamento do DN?
O jornal saía por milagre, havia permanentemente plenários dos tipógrafos. Num deles, ouvi: ‘Soubemos pelos camaradas do Banco Pinto & Sottomayor que recebe desde há dois anos um depósito da administração’. Disse que era mentira, nem sequer tinha conta lá. No dia seguinte fui ao banco. Um camarada recebeu-me e veio com uma ficha na mão. ‘De facto, o camarada José Carlos Pinto Coelho recebe há dois anos e meio um depósito’. Acontece que nunca me chamei José Carlos… Penso que foi esta a causa. Nessa noite saí para o bar Snob e no meu quinto ou sexto whisky fui convidado para editor de política internacional para o Jornal Novo, que ia começar. Era um jornal da esquerda democrática. Estiveram lá o Mega Ferreira, o João Aguiar, o José Sasportes, que era o chefe de redacção.
Como se dá a entrada na RTP?
Um dia escrevo uma crónica muito violenta sobre a indefinição do governo de esquerda, num país a caminho do socialismo, sobre a NATO. Não defendia uma coisa ou outra, apenas uma clarificação. Esse editorial fez com que a secretária do presidente da RTP, Edmundo Pedro, me telefonasse. Fui convidado para editor de política internacional. Nunca tinha pensado em fazer televisão. Assim entrei na RTP por cima, que é sempre muito mau. Era director um velho jornalista, bom homem, Botelho da Silva. Caio de pára-quedas num trabalho que nunca tinha feito, com 33 anos, numa redacção fervilhante e rodeado de desconfiança. Diziam uma coisa que era verdade – eu não sabia nada de televisão. Só meses depois de lá estar é que me atrevi a dar a cara no ecrã. Falhou o apresentador do pequeno telejornal das 18h, que era filmado e depois revelado e montado. Chamei um operador de câmara e no meu gabinete li as notícias.
Sem formação específica?
Nenhuma.
Não é nada disto que quer na Telecinco.
Isto hoje em dia é inadmissível. Numa noite em que estava de serviço havia uma greve do lixo e houve um conselho de ministros extraordinário em Braga. O secretário de Estado da Comunicação Social telefonou-me a informar que ia fazer uma comunicação ao país sobre as medidas históricas. Eu disse que devia dar para entrar naquela noite. Os batedores levariam o filme até ao Monte da Virgem, que transmitiria por feixe hertziano. Telefonaram-me dos estúdios do Porto a avisar que a comunicação do secretário de Estado tinha 16 minutos. Dei instruções para editarem porque o último telejornal tinha cinco minutos. Passado pouco tempo telefonou o secretário de Estado: ‘Dizem-me dos estúdios do Porto que deram ordens para cortar a minha comunicação. Não sabe que está a receber ordens de um seu superior?’. Respondi-lhe que não era meu superior. Passado pouco tempo, Edmundo Pedro telefonou-me aflitíssimo. Cumpri a ordem do presidente da RTP mas no dia seguinte apresentei a demissão.
Voltou a ter cargos de direcção mais tarde.
É outro momento da minha carreira jornalística que prezo muito: fui um dos fundadores do célebre telejornal chamado Informação 2. Era director de informação o jornalista Hernâni Santos, que me convidou para chefe de redacção. No segundo canal foram meus pupilos Miguel Sousa Tavares, Margarida Marante, Joaquim Furtado, Cesário Borga, Perez Metelo, José Júdice , António Mega Ferreira… Uma equipa de luxo.
Mas a sua experiência no canal 2 também acabou mal.
Foi com um julgamento no tribunal da Boa-Hora por causa do programa A Par e Passo. Era eu o chefe de redacção quando se decidiu fazer esse programa de informação pura e dura. Mário Lindolfo, Joaquim Furtado e Adelino Rodrigues propuseram entrevistar por cima dos guardas um célebre preso político, Carlos Antunes, que estava no Hospital de Santa Maria em greve de fome. E perguntaram-me: ‘Se fizermos essa entrevista tu pões no ar?’. Respondi que a pergunta era uma ofensa. O que é que eles fizeram? À hora certa ele aproximou-se da janela, e eles colocaram uma câmara do outro lado do pátio, com um zoom. O som foi feito por walkie-talkie. O do Carlos Antunes entrou dentro de um pão. Vieram a correr com o material para o Lumiar e entraram-me pelo gabinete : ‘No fim da entrevista o Carlos Antunes faz duas perguntas ao ministro da Justiça. A entrevista é boa por si própria, se quiseres a gente corta isto, se calhar ainda te pode dar chatices’. O programa ia para o ar nessa noite e convidei o ministro da Justiça, o dr. Menéres Pimentel, um homem de bem. Ele disse: ‘Ah, mas é que vou com certeza! Não há nada que o Carlos Antunes me possa perguntar a que eu não saiba responder!’. Telefonei para o então director de informação da RTP, Duarte Figueiredo, para o informar disto tudo. Ele não me disse nem ai nem ui. O programa termina e os telefones da RTP tocam de todo o país a dar-nos aplausos. No dia seguinte eu e os meus colegas fomos chamados ao gabinete do presidente da RTP: tínhamos um processo disciplinar para despedimento com justa causa. E não só um processo disciplinar mas um processo-crime por abuso de confiança, porque o director de informação alegava desconhecimento do programa. De maneira que fomos malhar com os ossos como réus no tribunal da Boa-Hora. Um excelente advogado, Adrião Rodrigues, defendeu-nos sem nos levar um centavo. Acabámos por sair ilibados.
O programa foi suspenso?
Nessa noite! Nunca mais houve número 2. Foi uma prepotência, uma arbitrariedade….
…e nem tanto do lado político, porque esteve lá o ministro…
Foi o princípio de uma limpeza à casa, que o recém-empossado presidente tinha apostado em fazer. Era preciso limpar a casa de perigosos esquerdistas.
Quem era o presidente?
Daniel Proença de Carvalho. Mais tarde, em 1986, tive um convite para director de programas dos dois canais. Para mim foi um choque e surpresa. Desses quase quatro anos em que estive a dirigir os dois canais, a Rua Sésamo é a minha menina dos olhos, das coisas que mais me encantam ter podido fazer. A minha equipa resolveu que a Rua Sésamo devia ser em português, sim senhor, mas também para África.
Há outro motivo de orgulho nessa época.
É a RTP Internacional e a RTP África. Um dia fui a Atenas a um encontro internacional de televisões europeias de países que têm muita emigração. Fiquei deslumbrado, não sabia nada dos mecanismos, dos satélites, dos downloads, dos pagamentos… Uma grelha de programas para fora de fronteiras, tudo era novo para mim. O meu relatório foi lido na reunião imediatamente a seguir e aprovado na hora. Fui convidado a montar uma estrutura para pôr no ar a RTP para os nossos emigrantes. E assim durante dois anos e meio não fiz outra coisa senão preparar o sinal da RTP Internacional e, por sugestão minha também, a RTP África. Ao fim de dois anos e meio o Governo tinha aprovado o projecto. Há uma cerimónia e era na altura secretário de Estado Marques Mendes e era ministro da Comunicação Social Couto dos Santos, com quem eu tinha tido dezenas de reuniões de trabalho. O sr. Marques Mendes faz o discurso e atrás dele, Couto dos Santos, que era ministro dele , não falou. Piscou-me o olho como quem diz ‘chegámos ao fim, é hoje’. Peguei na minha gente mais próxima e fui celebrar. Cheguei à RTP e fui chamado pelo vice-presidente, Brás Monteiro. Pensei que era mais um que me ia dar uma palmada nas costas. ‘O senhor vai ser demitido porque o conselho de administração entendeu que não podia haver dois directores de programas, o José Eduardo Moniz com os canais nacionais e o Carlos Pinto Coelho com a RTP Internacional e a RTP África’. Saí muito triste. Fui para casa vestir o pijama durante um ano.
A sua longa relação com África já tinha antecedentes familiares.
A minha mãe nasceu por acaso em São Tomé. A boa da minha avó tinha barco marcado para Portugal. Estávamos nos anos 10, mas o barco não apareceu e a minha avó pariu em São Tomé. O meu avô era encarregado de uma roça de cacau. Depois foi trazida cheia de febres para a Rua da Cedofeita.
O que fazia o seu pai?
Era juiz. Primeiro foi para Espinho. Eram tempos muito difíceis, tanto como os de hoje. Nasci no fim da guerra, com racionamentos. O meu pai, como juiz, tinha direito a duas ou três batatas por semana. O meu pai tinha um quarto alugado, enquanto a minha mãe dava aulas em Lisboa. Era professora de Português e Francês, primeiro deu aulas no Liceu Francês e dava explicações. O meu pai ia a Lisboa uma vez por mês e trazia numa mala de cartão as batatas que não comia, para mim e para os meus irmãos gémeos, que entretanto morreram.
Eram mais velhos?
Eu era o mais velho. Chamo-me Carlos Nuno e o Nuno deve-se ao facto de ter nascido muito frágil, a morrer. A minha madrinha era a marquesa do Cadaval, Olga de Cadaval. Gostava muito da minha mãe, que dava explicações às suas filhas. Nasci e a minha madrinha fez uma promessa a Dom Nuno Álvares Pereira, seu antepassado, que se sobrevivesse me chamaria Nuno.
O pai juiz e a mãe professora e terem de juntar batatas…
E ter de ir para África. Não tinham emprego. Na altura havia o escoador das colónias, concorreram no Ministério do Ultramar e foram para Moçambique. Na viagem morre o meu segundo irmão e é atirado ao mar.
O outro irmão já tinha morrido?
Sim, pouco depois da nascença. A minha mãe, que escrevia primorosamente, era de grande gabarito intelectual, culta, muito firme, foi escrevendo narrativas para uma revista dirigida por uma grande mulher, a Maria Lamas. Em cartas enviadas à Maria Lamas que li há pouco tempo, conta todos os episódios dos dias da morte do meu irmão, que morreu porque o médico de bordo era um bêbado, um incompetente e um mulherengo. Inclusivamente nas vésperas do pobre do meu irmão estar a morrer por intoxicação de medicamentos errados, o médico faz assédio sexual à minha mãe! Tenho muito respeito por ela.
Tanto que publicou livros dela.
Tinha encontrado no baú esses contos e achei que era bom publicá-los. Mas o grosso da sua obra está nas caves desta casa. Durante anos dirigiu o Teatro Radiofónico de Lourenço Marques. São centenas de peças de teatro que hoje o Rádio Clube de Moçambique conserva. O nome da minha mãe é hoje muito venerado em Moçambique. A minha mãe formou-se com 20 valores. Quando chegou a Lourenço Marques foi para a melhor escola, no bairro da Polama, onde foi professora das filhas de Almeida Santos, por exemplo. E a minha mãe, dois, três anos depois de lá chegar, apercebeu-se que aquela cidade eram duas, a dos ricos brancos e a da pobreza dos pretos, mulatos, indianos e chineses, que viviam do outro lado da cidade. A minha mãe pediu para ser deslocada para Chipamanine, do outro lado da cidade, e conseguiu, através das obras de caridade, que os alunos tivessem pequeno- -almoço. A minha mãe foi de tal maneira abnegada que anos depois, na minha maior aventura jornalística, a minha ida a Maputo para ir entrevistar Samora Machel, este disse-me: ‘A tua mãe Sarah não quer vir cá a meu convite? A tua mãe fez muito bem a muitos moçambicanos. Tenho ministros que aprenderam a ler com a tua mãe’.
Não foi aluno da sua mãe?
Pois fui. Infelizmente. A minha mãe era brava comigo, batia-me. E nos outros, se fosse preciso. À reguada. E depois era de uma ternura e de uma candura… Era genuinamente boa mas implacável com a vida política, cultural e profissional. Não havia meias cantigas, ou era ou não era.
Como foi viver em Lourenço Marques?
Era uma coisa linda. Vivi mesmo no centro, na cidade que considero a mais linda do mundo. Conheço aquelas árvores. Acabei por ser filho único, filho de pais velhos, a minha mãe com 30, o meu pai com 40. Foi uma infância muito metido comigo, com os meus livros.
Apesar de estar em África.
Estudei no Colégio Maristas, que nos puxava muito pelo desporto. Mas quando chegava a casa gostava de estar sozinho a ler. Não tenho amigos de infância. Mas foi muito enriquecedora, comecei a falar francês ao mesmo tempo que comecei a falar português. E quando cheguei à adolescência, com a África do Sul ali ao lado, comecei a aprender o inglês por namoro. Comecei a ler muito cedo, estou cheio de memórias que ganhei muito cedo. Não vou ter tempo de vida para ler um décimo dos livros que estão aqui no corredor, quanto mais os da cave ou do escritório. É a única revolta que tenho.
Quando teve os enfartes sentiu esse baque?
Não. Fumava três maços por dia desde os 17, 18 anos. Um dia a máquina disse ‘plof’! Tive dois enfartes no mesmo dia em 2005. Sou da geração dos jornalistas com três cigarros acesos ao mesmo tempo e a bater à máquina. Percebi que estive ao pé da morte e andei uns dias largos sem fumar. De repente senti que estava irascível, encolerizado, mal comigo, mal com as pessoas e sobretudo infeliz. Tive uma grande conversa com o médico assistente. E agora não fumo, acendo cigarros. Mais do que um vício é um prazer psicossomático. Tive a morte ao lado. Leio o De Profundis, Valsa Lenta do Cardoso Pires ou as crónicas do Lobo Antunes e percebo-as. Ah, toquei a morte. Mas a minha vida não se alterou.
Quando regressou a Portugal?
Chama regresso, eu chamo a primeira vinda. Vim com 19 anos para a universidade. Salazar não deixava abrir universidades em África. E íamos para as engenharias na África do Sul ou para as Humanidades em Portugal.
Foi na universidade que conheceu a primeira mulher?
Sim, a Maria Otília estava no outro lado da praça, na Faculdade de Letras. No intervalo grande íamos tomar café e catrapiscá- -las. E casei ainda estudante.
É namoradeiro?
Já fui. Monumentalmente. Tenho uma tendência para marialva muito assumida e conhecida. Não há ninguém da minha turma do liceu que não se lembre e se ria. Namorei com aquela e já tinha a outra e levava uma a casa e ia a correr para a outra.
Um pinga-amor?
Sim. Gosto muito de mulheres! Muito, muito, muito. Depois a vida encarrega-se de arrumar as coisas e tive imensa sorte de conhecer a Clara. Conheci a Clara [Alvarez] era ela directora dos Arquivos da RTP e eu director de Informação. Durante as autárquicas pensei fazer nove equipas de reportagem e mandá-las para todo o país um mês antes das eleições. Na altura não havia satélite nem vídeo. Tive uma reunião com a Clara e foi rápida, eficiente e inteligente. Isto foi em 1979. Nunca mais vi a senhora. Em 1986, aceito o convite para director de programas e de repente, estava a fazer a barba, lembrei-me dela. Nem sequer me lembrava do seu nome. Pura e simplesmente telefonei à senhora. Convidei-a para directora do segundo canal. Esta mulher encantou-me mas nem me passava pela cabeça… Até que ao fim de um dia de trabalho, digo-lhe: Estou a olhar-te com outros olhos (risos). Com a minha fama de valdevinos, disse ‘Vai dormir que isso passa’. No dia seguinte ofereceu-me o livro A Amizade do Alberoni. Mas quanto mais negas, mais caiu no goto. Um dia fiz-lhe uma declaração formal e ela aceitou. Estamos casadíssimos há 18 anos.
Como nasceu a ligação com a fotografia?
Sei o que é ser fotógrafo e fazer fotografia e por isso não sou fotógrafo. Não há evasão maior do que ter tempo, estar num local que me agrada, todo concentrado no clique que vou fazer a seguir.
É o estar na espera ou o resultado final, como os caçadores que gostam mais do momento da espera?
Não, é o momento de agir e ver o resultado como um menino que vê um brinquedo novo. Sabes o que é ver uma fotografia e torceres-te todo?
É uma frustração?
Não, é inveja!
Marcamos conversa para daqui a dez anos?
O que quer que seja o resultado da Telecinco, estou numa fase tal de apego à vida… Não tenho razões de queixa da vida. E quando tens interesses e podes usar o tempo, não é para ficar quieto. A partir de ontem e de um telefonema que recebi, já estou com a nervoseira para recomeçar o meu livro sobre os anos na RTP!