Das duas uma

‘30 Retratos com Histórias’, patente na KGaleria, onde Eduardo Gageiro nos mostra 28 retratos de artistas e dois de políticos, é uma dádiva ao país.

como diria walter benjamin, com a invenção da fotografia, a capacidade de captar o real de forma mecânica e a possibilidade da sua reprodução vieram dispensar a pintura de imitar a realidade e tiraram-lhe aquilo a que ele chamou a ‘aura’ da obra-prima. olhada com desconfiança pelos artistas e críticos do seu tempo, instalados nos seus privilégios e preconceitos, a fotografia, como o cinema, foram acolhidos, ao contrário, pelos autores vanguardistas e surrealistas do começo do século, com entusiasmo. cedo viram numa e noutro a capacidade de exaltar a força e a evidência do real contra a falsidade ‘artística’ da pintura e do teatro, e perceberam que, por trás da câmara, podia estar um artista que, mesmo se não organizasse ou fabricasse a realidade, escolhia o assunto, o ângulo, o enquadramento, o momento e a luz. numa palavra, o que o fotógrafo acrescenta à realidade, é ‘o olhar’.

ninguém duvida, hoje, que cartier-bresson, capa, doisneau, eugene smith, alvarez bravo, dorothea lange ou andré kertesz, para citar apenas meia dúzia de génios da fotografia, nos ajudam a perceber o que foi o século xx. mas, entretanto, a fotografia tornou-se ‘artística’, e os fotógrafos da realidade (sobretudo os repórteres) passaram a ser vistos com menosprezo. foi o caso de eduardo gageiro, pioneiro da foto-reportagem em portugal que, com o tempo, foi sendo relegado para a categoria menor de ‘alguém que trabalha por encomenda’. a verdade é que, depois dele, fotógrafos como rui ochôa, alfredo cunha, luís vasconcelos ou antónio pedro ferreira – a que temos de acrescentar gérard castello lopes, augusto cabrita, antónio sena da silva, víctor palla e costa martins, por exemplo, que nunca estiveram ao serviço de nenhum jornal ou revista –, ajudaram-nos a perceber o que foi portugal nas últimas décadas do século passado.

mas, tal como na pintura a partir do renascimento, há um género onde o trabalho do fotógrafo exige capacidade de admiração e sensibilidade, poder de observação, paciência e sentido do instante: o retrato. a exposição ‘30 retratos com histórias’, patente na kgaleria, onde gageiro nos mostra 28 retratos de artistas e dois de políticos (salazar e spínola) é uma dádiva ao país. as fotografias de cardoso pires, josé régio, sophia, torga ou rosa ramalho, mas também de orson welles, nureyev ou rubinstein, merecem figurar numa selecta do género. mas se eu tivesse que escolher uma, era a de amália. num bairro popular, rodeada de gaiatos que brincam, indiferentes à irradiação da sua celebridade, amália, com uma túnica que faz dela uma deusa, é a única que enfrenta o olhar do fotógrafo, com o porte altivo dos tímidos. como diria pascal, ‘o sol e a morte não se podem olhar fixamente’. experimentem fixar longamente o olhar de amália. acabarão por baixar os olhos, como eduardo gageiro teria feito se a câmara não tivesse disparado naquele momento milagroso.

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