Das duas uma

Editados agora em português, os livros de Tony Judt, um dos últimos grandes intelectuais do século XX, são leitura obrigatória para perceber como chegámos aqui.

a morte dramática de tony judt em agosto do ano que hoje termina (foi-lhe diagnosticada uma esclerose amiotrófica que, em dois anos, lhe paralisou, progressivamente, todas as funções vitais) serviu, ao menos, para nos chamar a atenção para um dos últimos grandes intelectuais do século xx. editados agora em português, os seus livros mais importantes, pós-guerra – história da europa desde 1945, o século xx esquecido e o tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, são leitura obrigatória para quem queira perceber como chegámos aqui. comecei pelo século xx, porque foi o primeiro que encontrei disponível na livraria, e descobri uma voz rara na aridez do pensamento contemporâneo.

é impossível resumir em poucas linhas o que judt identifica como os sintomas que nos ajudam a perceber como, desde o último terço do século passado, o mundo que conhecíamos mudou radicalmente. mas podemos deixar algumas pistas. a primeira é, como ele diz, o declínio do ‘poder das ideias e da responsabilidade dos intelectuais’; os primeiros capítulos do livro são dedicados precisamente a figuras tão polémicas como camus, koestler ou hannah arendt, para citar apenas alguns; e, como o título do livro indica, a perda da memória (a ideia de que «o passado nada tem de interessante para nos ensinar»). outro paradoxo é a proliferação caótica da informação, que tende a fazer desaparecer uma ‘cultura comum’ e a transformar as comunidades em somatórios de indivíduos solitários.

outra razão do desastre é a destruição metódica do estado (e não deixa de ser sintomático que a última parcela de ‘soberania’ que parece restar-nos seja a chamada ‘dívida soberana’): desde a dupla tatcher/blair, diz ele, «tornou-se cada vez mais comum tratar o estado, não como um benfeitor natural de primeiro recurso, mas como uma fonte de ineficácia económica e intromissão social que, sempre que possível, era preferível excluir da vida dos cidadãos».

como corolário, judt cita a propagação endémica do medo: medo do terrorismo, medo da mudança, medo da perda do emprego e da segurança, ou, como ele diz, «medo que já não sejamos só nós que não conseguimos moldar as nossas vidas, mas que também as autoridades tenham perdido o controlo, para forças fora do seu alcance».

no último número deste semanário, a propósito do caso wikileaks, josé antónio saraiva, terminava o seu editorial com uma conclusão aterradora, mas que eu partilho por inteiro: «as democracias são autofágicas; (…) transportam dentro de si os instrumentos da sua própria destruição». e acrescentava: «e isto não tem saída». judt não fala de outra coisa, mesmo se o faz com a mesma lucidez e o mesmo estoicismo com que enfrentou a morte lenta mas inexorável que o consumiu nos últimos anos. e com uma confiança ilimitada na única coisa que, desde a grécia antiga, nos pode salvar do desastre: o valor incorruptível da palavra.

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