Heroínas à força

Demorei anos a perceber que as comédias românticas não reflectem a vida como ela é, mas antes o espelho de Harry Potter.

quanto tempo demoramos a conhecer uma pessoa? eu diria meia dúzia de anos, no mínimo. e de preferência com alguns episódios/acidentes pelo meio, para conseguirmos conhecê-la tanto nas fases boas como nas más, na saúde e na doença, na prosperidade e na adversidade, na alegria e na tristeza, na realização e na privação.

conhecer bem uma pessoa requer mais do que objectividade e perspicácia; dedicação, inteligência e uma boa dose de amor também ajudam, pois a nossa disponibilidade para o outro é tanto maior quanto a nossa capacidade de o aceitar e de o amar tal como ele é, sem máscaras nem comportamentos encenados de comédia romântica.

não tenho nada contra comédias românticas, até sou capaz de passar semanas em frente do ecrã a deglutir histórias de amores impossíveis cheias de peripécias cómicas/apaixonantes que acabam quando se tornam possíveis. uma comédia romântica é um paliativo distractivo e funciona como um analgésico – pode aliviar a dor, mas não a cura.

o grande problema das comédias românticas é que elas nos tornam alérgicos à vida. isto é, tudo o que elas mostram não é verdade, e tudo o que na vida se assemelha a uma comédia romântica geralmente dá mau resultado.

mesmo assim, demorei alguns anos a perceber que as comédias românticas não reflectem a vida como ela é, mas antes o espelho de harry potter, que mostrava a quem o olhasse, não o passado nem o futuro, mas o que cada um gostava que a sua vida fosse. ou seja, não um espelho da realidade, mas uma projecção de sonhos e de desejos, quase nunca realizáveis.

é claro que quando temos 20 ou 30 anos gostamos de pensar que o príncipe encantado existe e que é exactamente como o imaginámos; sentimos que somos a carrie de sexo e a cidade ou a meg ryan em um amor inevitável, em sintonia de amor ou em você tem uma mensagem. mas o tempo passa e a meg ryan perde a graça e a frescura à conta de tantas injecções de botox e de querer preservar aquele ar inocente/pretensamente forte de heroína romântica. na verdade, aquelas mulheres nunca existiram. tentar viver a vida como elas é um disparate, dá imenso trabalho e não leva a lado nenhum.

voltando à pergunta inicial, e partindo do pressuposto que a vida é uma coisa e que as comédias românticas são outra, basta pensar que nas comédias românticas o homem só ressona depois de viver com a heroína há mais de seis meses. na vida real um homem que ressone, ressona sempre, a não ser que seja submetido a uma intervenção cirúrgica, que nem sempre resolve o problema. é claro que um homem que ressone não deixa de ser amado por isso, mas terá de perceber que poderá ser amado, apesar disso.

talvez a partir dos 40 uma pessoa já não organize a sua lista de requisitos em relação ao que deseja no outro em função das qualidades que ele devia ter, mas em função dos defeitos que não tem: um homem que seja mentiroso, mandrião, conquistador, que fume um maço de cigarros por dia e que embirre com a minha família não pode estar ao meu lado. e já agora, convém que não ressone. afinal, não somos nenhumas heroínas, a não ser à força, quando a vida nos obriga.