Charme e consistência

O maior problema de muitas pessoas que estão casadas é o facto de estarem mal casadas.

casar com a pessoa errada é um clássico; às vezes as pessoas casam por impulso, outras por inércia, outras vezes porque o medo da solidão se transforma num monstro permanente, ou porque acreditam que não vão arranjar melhor. ou ainda para esquecer um grande amor, ou, não raro, para esfregar na cara desse grande amor perdido que há quem nos queira mais e melhor e que a vida continua. e depois há os que casam porque sim e ninguém percebe porquê, nem os próprios.

ora casar é quase tão fácil como fazer um filho – o difícil é criá-lo. depois da festa, da euforia, da ideia de um sonho a dois, das cambalhotas durante a lua de mel e do álbum de casados impresso em cima da mesa de apoio da sala, é aí que o trabalho começa. e que começam também os problemas. uma pessoa olha para o lado e pensa ‘mas afinal como é que eu vim aqui parar’? ‘quem casa não pensa, quem pensa não casa’, lá diz a vox populi com alguma razão. mas há quem pense bem antes de casar e mesmo assim se engane. o casamento pode mesmo mudar uma pessoa, para melhor ou para pior. e isto não é especulação; já vi grandes piratas que encostaram definitivamente à box, mas também já vi grandes choninhas que soltaram a franga ao fim de 20 anos de comportamento exemplar.

a arte de levar um casamento a bom porto começa por olhar para o outro e acreditar que é a pessoa certa? não exactamente e não só. mais importante do que encontrar a pessoa que corresponde ao que sempre sonhámos é descobrir alguém com quem construímos uma relação que nunca imaginámos ter e que afinal nos leva muito mais longe do que pensávamos ser uma relação. não tem a ver com a concretização de sonhos, mas com a construção de uma realidade vivida e saboreada no dia a dia, com dedicação, tempo, afinco e, claro, muito amor. o que é o oposto do romantismo exacerbado que leva ao altar ou ao cartório duas almas que pouco têm a ver uma com a outra e que foram ali parar por obscuras razões ou argumentos bizarros.

e também convém não esquecer que nem todos temos feitio para assumir o casamento com tudo o que se espera que ele implique: fidelidade, dedicação, prazer na estabilidade, capacidade de resistir à rotina, vontade de construir uma vida a dois.

há quem goste mesmo de estar sozinho, da mesma maneira que há quem só se sinta bem se estiver envolvido com várias pessoas ao mesmo tempo. mas quem assim vive, diz o bom senso, não reúne os mínimos olímpicos para conseguir ter uma relação decente, por isso, em caso de dúvida, é mais prudente apostar na recuperação de uma alma solitária e empedernida do que confiar no charme esfusiante de um conquistador profissional irresistível, mas que nunca pode ser levado a sério, até porque muito charme é quase sempre sinónimo de pouca consistência.