Das duas uma

‘O Mágico’ não escapa ao pecado do cinema europeu de há anos para cá: ter deixado de pensar em termos de emoções.

apersistência em cartaz de o mágico e a constelação de estrelas que recebeu nas páginas especializadas venceram a minha relutância em ir ver a segunda longa-metragem de silvain chomet. já tinha visto belleville rendez-vous, que foi saudado com grande alarido na época, o que se compreende. o desenho animado foi inventado na europa por um francês, émile reynaud, em 1892, mas a verdade é que foi nos estados unidos, graças ao génio de walt disney, que a animação se popularizou e se transformou na grande indústria que é hoje. que um europeu tenha metido mãos à obra e reunido os meios financeiros, técnicos e artísticos para produzir uma longa-metragem de animação merecia ser saudado.

o problema é que chomet teve tudo o que precisava para fazer um grande filme, mas falhou no essencial. o filme provocava admiração pela qualidade do desenho, da cor, do enquadramento e da découpage; mas faltava-lhe o principal: emoção. mesmo se o desenho de o mágico é diferente (mais realista, pela necessidade de retratar fielmente a figura do sr. hulot), os problemas com que se debatia belleville persistem. quando vi o filme, não houve um gag que suscitasse uma gargalhada, nem por um momento se criou na sala aquela emoção contagiante que ressaltava dos filmes de jacques tati, a quem chomet presta homenagem. a opção pelo mudo ajuda a explicar muita coisa, mas não chega: tati também teve a audácia, que pagou cara, de, em pleno sonoro, abdicar dos diálogos, como fizera chaplin; e, no entanto, jour de fête, as férias do sr. hulot, o meu tio e playtime eram obras-primas de humor e de emoção. e os filmes burlescos de mac sennet, onde chaplin se formou, e os do genial buster keaton eram mudos e ainda hoje nos fazem rir, nos comovem e nos enchem de admiração.

mesmo se a ideia de ir desencantar um projecto esquecido de tati – que, num tom chaplinesco, traduzia a amargura do autor de playtime por não ter conseguido continuar a filmar – merece respeito, a verdade é que silvain chomet não escapa ao pecado do cinema europeu de há anos para cá: ter deixado de ser capaz de pensar em termos de emoções. os filmes de disney podem transmitir valores conservadores e ser pueris (mas não se dirigem, prioritariamente, a um público infantil?), mas são obras-primas de emoção. é isso que faz dele um dos maiores realizadores americanos, como disse capra, que sabia do que falava. chomet parece estar mais próximo de outra escola: a dos filmes de tex avery, por exemplo, que traduziam uma tradição anarquista e contestatária que sempre existiu no cinema americano, do burlesco e dos filmes da warner aos da geração do vietnam. mas tom e jerry eram igualmente prodígios de invenção ao nível dos gags, modelos perfeitos de ritmo e de eficácia, com brilhantes bandas sonoras a sublinhar os efeitos visuais. é isso que falta, hélas, aos filmes de silvain chomet.

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