carlos castro, assassinado no sábado passado num quarto de hotel em nova iorque, era uma personagem bem mais estranha e complexa do que a leitura das suas crónicas deixava perceber. numa das últimas entrevistas, criticava amargamente a «futilidade» do nosso jet-set. ora, ele passou a vida inteira a escrever precisamente sobre esse jet-set – e de um modo totalmente… fútil. ‘esta estava bem vestida, aquela estava horrivelmente penteada, a outra estava lindíssima, eu sei isto, eu conto aquilo’, e assim por diante.
além disso, essas crónicas eram bastante primárias e mal escritas. as frases revelavam-se frequentemente de difícil compreensão, porque não tinham sujeito nem predicado, faltava-lhes o verbo, pareciam caídas do céu aos trambolhões e juntas de modo desconexo e errático. muitas vezes interroguei-me como era possível uma pessoa assim ganhar a vida a escrever.
mas, ao mesmo tempo, carlos castro parecia ter consciência da sua própria futilidade – o que não é vulgar naquele meio – e sofria com isso. ainda recentemente publicara um livro que pretendia homenagear agustina bessa-luís, florbela espanca e sophia de mello breyner – escritoras que não tinham o menor ponto de contacto com ele –, além das ex-primeiras damas maria barroso e manuela eanes, entre outras mulheres da cultura.
esse lado de carlos castro, essa necessidade de se desligar do mundo a que, por todas as razões, pertencia, e de tentar juntar-se a outras pessoas, chegava a ser comovente. e denunciava uma profunda fragilidade, uma vulnerabilidade que todo o seu comportamento também revelava. castro, no final da vida, era uma figura torturada, insegura, infeliz, desesperadamente à procura de um destino que sentira ter falhado.
por isso, ia tentar buscar ‘companhias’ com quem nunca tinha andado, e queixava-se da vida e do mundo. dizem os amigos que tinha terror de ser assassinado – mas sabia que ia morrer assim. lá saberia porquê.
em entrevista ao sol dada há três anos e meio, dizia:
«tenho a certeza absoluta de que o meu fim está próximo. já ultrapassei os 60 e não tenho apetência para uma caminhada muito mais longa».
e, questionado sobre a razão por que queria que as suas cinzas fossem atiradas pelas ruas da broadway, respondeu: «muita coisa me marcou em nova iorque. o bom teatro da broadway, os grandes concertos que vi. sinatra, liza minelli, aretha franklin».
há muito tempo li a notícia de um crime em coimbra ocorrido num jardim ou bosque junto à margem do mondego, que me chamou a atenção pela extrema violência que envolvia. o cadáver estava horrivelmente mutilado, dando ideia de que o assassino entrara num processo de fúria cega e incontrolável.
embora a notícia não fizesse qualquer referência a essa circunstância, pensei imediatamente tratar-se de um crime sentimental de natureza homossexual.
porquê? – perguntará o leitor. não sei. foi uma intuição, um sexto sentido, uma suspeita espontânea. e que veio a revelar-se tristemente certeira. passado algum tempo, o assassino foi descoberto e preso, concluindo-se que a origem do crime fora uma desavença na sequência de uma relação de carácter homossexual, penso que ocasional.
a partir daí fiquei alerta. e acompanhei alguns crimes dessa natureza, vários deles marcados pela mesma característica de extrema violência.
isto dá que pensar. claro que em todos os tempos houve crimes por razões amorosas. jovens que matam as namoradas que os deixaram ou queriam deixar, maridos que matam as mulheres que os trocaram por outros homens, mulheres que matam os maridos por não suportarem os maus tratos ou por quererem fazer vida com os amantes. todos os dias os jornais vêm cheios de notícias destas. mas em regra são crimes ‘normais’: a tiro ou à facada (no caso de serem os homens a matar) ou por envenenamento (quando são as mulheres).
mas, quando se trata de crimes amorosos envolvendo homossexualidade, a violência, regra geral, é muito maior. interessei-me por vários crimes desse tipo, como o do padre alberto neto (que foi meu professor no liceu d. joão de castro e era um homem que estabelecia com os alunos relações de grande camaradagem), num pinhal da margem sul. como o do estilista gianni versace em miami. como o da fonte luminosa, há 20 anos, em que o cadáver apareceu queimado e metido dentro de uma mala lançada para o interior de um café decrépito. como o do proprietário da discoteca trumps. como outros, menos publicitados.
neste crime de carlos castro voltou a acontecer o mesmo: o cronista, além de ser golpeado profundamente na cabeça, foi castrado. o que denuncia um estado quase demencial por parte do assassino. a castração (certamente quando castro era já cadáver) é um acto extremo. ora, segundo disseram os amigos e conhecidos do suposto assassino (um jovem modelo de 21 anos que depois cortou os pulsos), ele era um jovem «pacífico».
o que se passou então? o amor homossexual enlouqueceu o jovem? o velho amante levou-o ao desespero ao ponto de o enlouquecer? o que aconteceu?
por muito que seja politicamente incorrecto dizê-lo, todas as evidências apontam para que há nas relações homossexuais um potencial de violência que, em certas circunstâncias, pode tornar-se explosivo e degenerar em tragédia. e carlos castro sabia–o muito bem – ao confessar aos amigos o seu terror de morrer assassinado.
uma coisa é indiscutível: basta ver os filmes de almodóvar para concluir que as relações físicas entre homossexuais atingem uma violência que roça a brutalidade. e ele saberá bem do que fala, pois muitos daqueles episódios serão autobiográficos.
através de almodóvar é fácil perceber até que ponto a fúria posta na relação sexual pode ser destruidora – imaginando-se que no limite degenere em violência brutal.
assim, a morte pode chegar quando menos se espera. através de um modelo recém-chegado à idade adulta, aparentemente pacífico, certamente belo, um adónis por quem castro se dizia perdidamente apaixonado. o que levou este jovem a destruir a vida de outro ser humano – e a dar cabo da sua própria? que estranho impulso o empurrou para atacar o suposto amante com fúria e depois o castrar? talvez nem ele saiba explicar.
é que, além do crime, o próprio acto de castrar é repulsivo. é preciso um jovem estar louco para castrar o cadáver nu de um homem muitíssimo mais velho.
