no ano seguinte à sua chegada aos eua, para onde david o. selznick o tinha convencido a emigrar, em 1939, alfred hitchcock assinava rebecca, que, ao ser-lhe atribuído o óscar para o melhor filme, premiava a aposta do seu produtor. hitchcock continuou a fazer filmes de sucesso, mas durante anos nenhum crítico o levou a sério. foi preciso um pequeno círculo de admiradores em frança (truffaut, chabrol, rohmer) para o mestre do suspense ser finalmente reconhecido como um dos grandes autores da história do cinema.
tudo começou em outubro de1954, quando uma revista iconoclasta, os cahiers du cinéma, decidiu dedicar-lhe um número inteiro e, no ano seguinte, entrevistá-lo. durante os anos que se seguiram, hitchcock assinou algumas das suas obras-primas do período da maturidade (janela indiscreta, vertigo, intriga internacional, psycho ou os pássaros). mas só em 1962, quando truffaut publicou o célebre livro de entrevistas e o comparou a poe ou dostoievski, é que ele foi reconhecido como um dos grandes mestres do cinema.
serve isto de exemplo para falar da necessidade de ser prudente quando se trata de conservar o património audiovisual, que é o papel de uma cinemateca. vale a pena irmos ainda mais longe: nos anos 60, a tv era considerada um meio de entretenimento para as famílias, incapaz de rivalizar com o cinema em termos de produção original de qualidade. ora, em 1955, hitchcock, sempre ele, decidiu produzir uma série de 270 pequenos sketches para a cbs, de 25 minutos cada (de que realizou 17), hitchcock presents, que lhe deu imensa popularidade e que eu tive oportunidade de mostrar pela primeira vez em portugal, nos anos 80, no programa cine-clube da rtp. foi graças a essa experiência que, em 1960, produziu e realizou psycho, o seu maior sucesso de sempre, um filme a preto-e-branco e de pequeno orçamento. durante anos, a crítica ignorou (para não dizer que desprezou) estes filmes, que hoje são essenciais para compreender a obra do mestre. o mesmo aconteceu, por exemplo, com nicholas ray, que realizou em 1954 uma pequena obra-prima para a tv, high green wall, a partir de uma novela de evelyn waugh, que durante anos não mereceu figurar na filmografia do autor de johnny guitar.
vem isto a propósito da responsabilidade das cinematecas na escolha do material a preservar e a programar. o tema exigiria páginas de reflexão. mas deixo no ar uma pergunta: quando, em 1981, steven bochco se lançou a produzir para a nbc a série hill street blues, estava a lançar um género que foi seguido por outros produtores e que nos deu séries de grande qualidade, como os sopranos ou mad men; não serão algumas dessas séries tão ou mais representativas da ficção audiovisual americana do que muito do cinema americano de hoje? deverá uma cinemateca, escudada na pureza do cinema em película e para as salas, continuar a ignorá-las?
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