Das duas uma

Eastwood não tenta convencer-nos de que existe vida após a morte, e dá-nos com ‘Hereafter’ uma lição de lucidez.

o último filme de clint eastwood, hereafter, levou alguns críticos a dizer barbaridades sobre o valor da obra e a confundir com ligeireza o que são as curvas inevitáveis do percurso de um autor (alguém que possui uma weltanshauugen e cuja obra é um corpus, construído sobre alguns temas obsessivos ou preocupações dominantes) com o sucesso ocasional de realizadores que até podem assinar bons filmes, mas que não passam de técnicos talentosos.

desde meados dos anos 80, com 65 anos, eastwood revelou-se um dos mais importantes realizadores americanos, alguém que conseguiu manter-se fiel à lição dos clássicos e aos valores da tradição liberal, sem deixar de ter um olhar lúcido sobre os vícios que sustentam ainda hoje muita da intolerância e da violência que habitam a américa profunda. e, como todos os realizadores para quem filmar é um vício, eastwood, que filma desde os inícios dos anos 70 praticamente um filme por ano (21 desde 1988, ano de bird), tem inevitavelmente na sua vasta carreira alguns filmes, como este, que ficam aquém da força emotiva das suas obras-primas: imperdoável, as pontes de madison county, mystic river, million dollar baby, cartas de iwo jima ou the changeling. mas, para quem temia que, aos 80 anos, ele tivesse caído na tentação de nos convencer de que existe uma vida para além da morte, eastwood dá-nos com hereafter uma lição de coerência e de lucidez: «não sabemos o que há do outro lado», diz ele, «mas, neste, sei que é o fim. as pessoas têm as suas crenças sobre o que há ou não há do lado de lá, mas são meras hipóteses. ninguém sabe antes de lá chegar».

como escreveu charlie jane anders, «hereafter não é um filme sobre o que se passa depois da morte, mas sobre o modo como a morte afecta as nossas vidas». o que interessa a eastwood são as reacções e os comportamentos de três personagens cujas vidas se cruzam e que lidam todas elas com a experiência da morte: a perda de um irmão gémeo (marcus), a experiência de ter estado do outro lado (marie) e o drama de george, um medium cujo dom transforma a sua vida numa maldição. das três histórias, a de marie (mesmo se cécile de france é espantosa) é aquela cujo drama temos mais dificuldade em partilhar; mas os dois outros episódios propiciam alguns dos grandes momentos da obra de eastwood: a fuga obstinada do miúdo pelas ruas de londres à procura de alguém que o ponha em contacto com o irmão morto, o seu intrigante mutismo, a sua fé inabalável, mesmo depois de passar de charlatão em charlatão; as cenas de george com mélanie no workshop de cozinha italiana, e depois em casa, a sua irremediável solidão.

que se escreva sobre este filme como se eastwood, de repente, tivesse perdido a lucidez ou a mão (o que acontece a muitos), é ser-se incapaz de reconhecer o olhar inconfundível de alguém que continua a ter alguma coisa a dizer ao mesmo tempo sobre a sociedade, sobre a vida e sobre nós.

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