miguel ângelo disse um dia, num assomo de falsa modéstia, que as suas esculturas já estavam dentro da pedra e que ele se limitava a retirar o que estava a mais. esta boutade aplica-se a todos os criadores que, no fundo, ‘se limitam’ a trazer para a luz aquilo que nos era ocultado pelo anonimato e que estava apenas à espera de ser revelado; no caso do escritor, de ser escrito. mas essa tarefa é uma tarefa titânica, e os grandes escritores são os que nos revelam e nos fazem reconhecer, como se fossem nossas, as angústias, os terrores e os anseios dos seus personagens. não é tarefa pouca.
jonathan franzen é um desses escritores. nascido em 1959, tornou-se, de um dia para o outro, uma das maiores figuras da ficção americana. depois da publicação, em 2001, de um longo romance, correcções (um livro de 566 páginas, já traduzido em português), franzen foi objecto de controvérsia por ter recusado participar no programa oprah winfrey’s book club, por temer ser confundido com um escritor de leitura fácil. o desconforto de franzen foi interpretado como uma postura elitista, mas a verdade é que a força do romance impôs-se de tal modo que lhe foi atribuído nesse ano o national book award e, no ano seguinte, o james tait black memorial prize, assegurando-lhe a consagração literária. nove anos depois (os mesmos que lhe levou a escrever correcções), franzen publicou freedom (cuja edição em português está anunciada), o que levou a time, avara em consagrar escritores, a dedicar-lhe a capa da sua edição de 23 de agosto do ano passado, chamando-lhe ‘grande romancista americano’.
correcções é um livro arrasador e franzen um escritor da família dos grandes romancistas como thomas mann, proust ou musil, cuja vocação não é a de descrever grandes conflitos nem a de construir grandes intrigas, mas a de amplificar a dimensões grandiosas pequenos detalhes da vida quotidiana de personagens vulgares. correcções descreve-nos uma família puritana, pequeno-burguesa e provinciana do midwest, os lambert: o pai alfred, um velho engenheiro reformado dos caminhos-de-ferro, um homem austero, atingido pela doença de parkinson, e a mulher enid, que tenta desesperadamente reunir os três filhos num último natal em sua casa. este episódio banal é um pretexto para franzen nos fazer descer, ao mesmo tempo, aos abismos de uma américa em transformação profunda nos finais do século xx, e nos fazer partilhar, com uma intimidade desconcertante, as frustrações, as angústias, as tentações e as pequenas fraquezas dos lambert. correcções resiste a tudo, mesmo a uma tradução que nem sempre consegue dar-nos em português a prosa torrencial e a riqueza por vezes barroca e extravagante das imagens de franzen, um escritor que, como miguel ângelo, nos faz pensar que ‘se limitou’ a revelar-nos a verdade incandescente de um mundo escondido nesse bloco de pedra informe a que chamamos realidade.
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