A música dos sobreviventes

Guy Davis, músico de blues americano, esteve em Portugal e falou sobre uma infância marcada pela amizade dos pais com Martin Luther King e Malcolm X.

fala de forma pausada. a serenidade que acompanha a voz sente-se mal se aproxima. são 11 horas, numa manhã com alguns (poucos) raios de sol a rasgar o céu cinzento, e o músico de blues guy davis acabou de acordar. é a t-shirt amarrotada que serviu, certamente, de pijama durante a noite que o denuncia. e os calções também, impróprios para sair à rua num frio dia de fevereiro em lisboa. veio propositadamente à europa para dar apenas um espectáculo, em portugal. sobre a sua música – que contagiou o público no concerto que realizou no pequeno auditório da culturgest –, explica que os blues que toca são «do estilo antigo, acústico e clássico».

guy davis aprendeu a tocar guitarra sozinho, aos 16 anos. antes disso, já tinha contacto com o banjo desde os oito, mas garante que nunca teve aulas. «descobri tudo sozinho», assegura, reconhecendo apenas que houve uma lição que lhe ficou para a vida. um dia, quando viajava de comboio de boston para nova iorque, conheceu um homem que não tinha o dedo indicador da mão direita. «quando me viu com a guitarra perguntou-me se podia tocar e ensinou-me os mais belos movimentos de dedilhar. foi incrível», recorda davis, que tinha 18 anos na altura.

é de memória cheia que vive esta música. ou não fosse o percurso pessoal do artista intimamente ligado à história da comunidade afro-americana dos estados unidos. filho dos actores ossie davis e ruby dee, amigos pessoais de martin luther king e malcolm x, o músico é o primeiro a reconhecer que a sua música transmite o «espírito de um povo que teve de lutar». «os blues são a música dos sobreviventes e eu venho de um povo que tem de lutar sempre o dobro», afirma, reforçando que prova disso é o facto de só recentemente os estados unidos terem eleito o primeiro presidente negro, barack obama.

apesar da amizade dos pais com figuras históricas na luta pelos direitos humanos, guy davis não conheceu martin luther king pessoalmente – só o pai dele e as suas filhas. ainda assim, o músico recorda-se das histórias que os seus pais lhe contavam e acredita que ter crescido numa família tradicional negra o ajudou a compreender melhor alguns aspectos da sociedade norte-americana. «só em adulto compreendi que era mais bem informado que as outras crianças da minha idade», menciona, reconhecendo a imensa sorte que teve por «conhecer tantas pessoas fantásticas».

é também por isso que hoje admira tanto barack obama e que considera fundamental a continuação do trabalho dos activistas pelos direitos humanos. actualmente só há algumas diferenças. «é importante termos consciência que a divisão de classes é o novo racismo. hoje em dia o racismo existe entre ricos e pobres. já não é tanto com a cor de pele».

alexandra.ho@sol.pt