o mais doloroso na perda de um amigo é o sentimento irreparável do tempo que não passámos com ele: das visitas que não lhe fizemos, das conversas que não tivemos, das opiniões que não partilhámos. gérard castello-lopes era um amigo. conheci-o nos anos 60, dos tempos do vává, mas sobretudo das noites no gambrinus, onde ficávamos a conversar (eu, o fernando lopes, o césar, o saboga, o seixas e o paulo rocha) até os empregados nos trazerem a conta, com gentileza, em sinal de que éramos os últimos clientes. nessa altura, ele era um apaixonado do cinema; o facto de ser filho do fundador da filmes castello lopes terá ajudado, mas foi sobretudo a descoberta comum dos cahiers du cinéma, que nos ensinaram a ver o cinema de outra maneira, que explica que ele nos tivesse adoptado.
mas, e isso é uma característica que nunca o abandonou, apesar de ser entre dez a quinze anos mais velho, portou-se sempre como um discípulo, alguém que agradecia ser aceite na nossa tertúlia e poder ouvir as nossas opiniões, mesmo se a sua cultura, a sua inteligência, a sua graça, a sua verve e a sua sensibilidade pediam meças a qualquer de nós. apesar do físico imponente, da idade e do estatuto (sempre me lembrou o griffith), ele sempre foi um tímido, alguém que, por excesso de escrúpulo, de exigência e de sentido crítico, nunca se considerava à altura de entrar no terreno onde nós, incautos, ingénuos e atrevidos, prometíamos um dia rivalizar com renoir, rossellini ou orson welles. convenci-o a escrever sobre cinema para o tempo e o modo, mas cada crítica, confessou-me, era uma tortura, um exercício onde a dúvida o assaltava a cada linha, a cada adjectivo. nunca perdemos a esperança de o obrigar um dia a fazer um filme, mas ele preferia a reflexão, a dúvida metódica, a dissertação e o humor. tinha, acima de tudo, uma qualidade rara: uma enorme capacidade de admirar, de se extasiar perante o génio dos outros.
só anos mais tarde, quando se mudou para paris, descobrimos que ele andara de leica em punho, imitando o seu mestre cartier-bresson, a fotografar «a tristeza, a miséria, a opressão a que todos estávamos condenados» – um país onde, nos anos 50, um amigo seu, michel barrett, foi preso no rossio por estar a fotografar um mendigo. as fotografias que nos deixou dessa época são admiráveis, tão admiráveis como os poemas de o’neill, mas, uma vez mais, a modéstia levou-o a metê-las na gaveta. e não fora antónio sena ter ido a paris, em 82, desafiá-lo a expô-las e, porventura, ter-se-ia perdido um espólio riquíssimo e ele não teria voltado a fotografar.
como muitos em portugal, o gérard era muito maior do que aquilo que nos deixou. e eu, que nos últimos anos, desde que nos proibiram de fumar charuto na lipp, perdi o gosto por paris, perdi irremediavelmente muitas horas de conversas e de convívio com um dos espíritos mais vivos e mais perdulários que conheci.
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