Das duas uma

Por trás da deficiência da personagem, há um plot que responde na perfeição aos grandes conflitos do drama clássico.

o discurso do rei é um grande filme? não é, mas é um excelente script interpretado por dois excelentes actores: colin firth e geoffrey rush. tom hooper é um grande autor? é cedo para dizer, mas assemelha-se mais a um excelente realizador de tv, um homem que conhece bem o seu métier, o efeito que pode tirar do uso das objectivas, que sabe reconhecer um bom script, construir uma cena e conduzir uma história.

o que não é pouco. ao contrário dos grandes génios do cinema, em que o estilo é a mensagem, o uso das grandes angulares e dos plongés verticais em hooper não tem o mesmo significado nem a mesma coerência com que são usados respectivamente por welles ou hitchcock. o uso sistemático de uma objectiva de 28 mm em john ford, dos travellings em ophuls, dos planos-sequência em mizogushi ou dos grandes planos em bergman são a própria matéria dos seus filmes, o meio que eles têm de nos fazer olhar o mundo e de nos transmitir uma moral. apesar da sua grande experiência de tv, hooper provavelmente está ainda à procura de acertar o seu olhar. mas, para começar, soube perceber o que era importante no script de david seidler: a relação entre o futuro rei e o seu terapeuta, o conflito atracção/rejeição entre o representante da realeza e o plebeu, entre a tentação de sacudir a humilhação da dependência e a humildade de reconhecer a necessidade de ajuda.

e, sobretudo, percebeu que, por trás da pouco atraente deficiência do personagem, havia um plot que respondia na perfeição aos grandes conflitos do ‘drama’ clássico: um homem que tem que vencer um desafio: o de superar a deficiência da fala, que é precisamente o único instrumento que lhe é concedido para usar o seu poder num momento dramático da história do seu país: a decisão de declarar guerra à alemanha nazi e de exortar os seus concidadãos à resistência.

depois da poética de aristóteles pouco se escreveu de importante sobre as regras que presidem à construção do ‘drama’. mas, de vez em quando, há uma frase que nos diz de modo lapidar o que esperamos de uma peça ou de um filme. no seu livro three uses of the knife, david mamet compara o ‘drama’ a um jogo e descobre que ambos obedecem às mesmas regras. diz ele: «desejamos que um jogo perfeito tenha várias reviravoltas que nos satisfaçam, mas que vistas retroactivamente tenderam sempre para uma favorável, satisfatória e inevitável conclusão».

hooper teve o mérito de perceber que o tema era susceptível de nos manter do lado dos seus personagens e de nos fazer desejar que eles superem os obstáculos e ganhem o desafio e que o filme tenha, assim, um desfecho favorável. um rei que tem de superar a gaguez não é diferente de um actor que anseia pela sua noite de sucesso, um atleta que tem de vencer um jogo decisivo ou um homem que tem de provar a sua inocência. todos eles precisam de vencer a adversidade e essa é a matéria de que se fazem as grandes histórias.

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