A vertigem do envolvimento

O ruído e a presença de outras criaturas vivas começam a incomodar-nos, porque o que queremos é entrar numa bolha de amor.

quando uma relação acaba, do que é que temos mais saudades? e quando uma relação começa, o que faz com que fiquemos presos a outra pessoa? a resposta é complexa, mas passa certamente pelo envolvimento. ou melhor, pelo desenvolvimento do envolvimento.

não é o sexo extraordinário que faz a festa toda, nem pensar. da mesma maneira que os homens olham para certas mulheres e a única coisa que conseguem ver nelas é a possibilidade de passar uns bons momentos, as mulheres também conseguem olhar para os homens e ver a mesma coisa. a grande diferença entre eles é que um homem está apaixonado ou anda a virar frangos, ao passo que uma mulher está apaixonada ou está à procura de um homem com quem se possa envolver.

em relação a esta questão relembro a minha teoria da feira popular: quando vivemos livres, isto é, sem estarmos envolvidos numa relação séria, é como se fossemos à feira popular e pudéssemos experimentar todas as atracções – o comboio fantasma, o twister, a barraca dos tirinhos, a roda gigante, os póneis e os carrinhos de choque. há muito movimento, ruído e cor à nossa volta, há farturas, algodão doce e até uma máquina que nos lê a sina. mas eis que, no meio da multidão, o nosso olhar se cruza com alguém e de repente tudo pára, tudo à volta perde cor, som e dimensão, e só aquela pessoa passa a contar para a nossa existência. o ruído que nos cerca e a presença de outras criaturas vivas começam a incomodar-nos, porque tudo o que queremos é entrar numa bolha de amor, de entrega e de plenitude com o outro, o eleito, que nos tocou no coração e com quem queremos fundir o nosso corpo, a nossa pele e a nossa alma.

o cupido volta a atacar, desta feita com setas novas, mais afiadas e certeiras, e é então que se inicia uma vertigem muito mais perigosa do que a que sentimos numa volta na montanha russa; a nossa existência passa a ser uma montanha russa constante e nem mesmo a dormir nos conseguimos desligar desse frémito delicioso, viciante e infernal que é a paixão.

é claro que tudo isto pode funcionar e constituir uma fonte de equilíbrio e de felicidade para ambas as partes, mas, para que tal aconteça, são precisas várias coisas: convém que vivam na mesma cidade, que não tenham life styles diferentes, que não se esqueçam que o outro traz quase sempre um pacote – três filhos, um irmão problemático ou uma mãe acamada – e que ambos estejam livres, sem nunca esquecer que a perfeição de todos os inícios é quase sempre ilusória.

e, já agora, se tudo se organizar para que possamos embarcar na viagem do amor total, o melhor é não voltar ao recinto da feira, sob o risco de cair na garras de uma qualquer distracção sem grande interesse que pode provocar estragos e danos na dita bolha a que chamamos o envolvimento.

afinal, não se pode ter tudo, e uma bela história de amor vivida em pleno pode ser quase tudo.