Brincar com o fogo

No passado dia 21 de Fevereiro foram enfim conhecidos de forma detalhada os primeiros números da Execução Orçamental de 2011, relativos a Janeiro.

Em circunstâncias normais, a informação que agora já é pública nem seria objecto de grande atenção: afinal, trata-se apenas do primeiro mês dos 12 que o ano tem. E, portanto, quaisquer análises devem ter este facto em consideração e primar pela prudência.

Sucede que as circunstâncias não são normais: Portugal está numa situação externa muito delicada e tem mesmo que convencer o Mundo (e, sobretudo, os credores) que está a fazer tudo bem. Ciente deste enquadramento e especialista em Comunicação como é, o Governo preparou o terreno: nas semanas anteriores à divulgação da Execução Orçamental, soube-se que a receita fiscal tinha subido 15,1% e que o défice da Administração Central tinha descido 58% face a Janeiro de 2010. Contudo, sobre a evolução da despesa… nada. Nem uma única palavra. Percebeu-se porquê, quando foram conhecidos os quadros do boletim da Direcção-Geral do Orçamento: a despesa efectiva do Estado sobe quase 1% num ano em que se previa que ela caísse 1,2%. O mesmo para a despesa corrente primária, que sobe (0,2%) quando devia descer 6,6%. Mas há pior: as ‘despesas com pessoal’ crescem 4,9% (quando a massa salarial da função pública foi cortada, em média, 5%); as ‘aquisições de bens e serviços’ dispararam 56,5%.

Vem o Governo dizer que não é bem assim, e que os dados da despesa não são directamente comparáveis com os de 2010. E isto quer porque, em Janeiro do ano passado, ainda se governava com duodécimos (o Orçamento só se tornaria efectivo no final de Abril); quer devido a alterações metodológicas decididas em determinadas rubricas da despesa.

Ora, é aqui que começam os problemas. É que, na verdade, estas alterações metodológicas (i) já acontecem pelo ano terceiro consecutivo, desde a apresentação do Orçamento para 2009, no final de 2008; (ii) desde aí, só têm lançado a confusão na comparação da evolução da despesa – com destaque para as ‘despesas com pessoal’ –; e (iii) têm sido sistematicamente feitas à revelia do INE e do Eurostat, ao contrário do que seria normal que acontecesse: afinal, trata-se dos organismos estatísticos oficiais de Portugal e da União Europeia, responsáveis pela metodologia de cálculo das contas nacionais, e que apuram o saldo das contas públicas em cada ano. INE e Eurostat já invalidaram as alterações decididas pelo Governo para 2009 e 2010, corrigiram os valores da despesa pública de ambos os anos e asseguraram a comparabilidade no tempo (1) – isto na óptica da contabilidade nacional (a ‘oficial’, de compromissos, através da qual se apura o valor do défice público). Porém, como a execução orçamental é apresentada numa óptica diferente (de caixa), os valores que, desde 2009, constam mês após mês dos boletins mensais, não foram corrigidos – dificultando análises e inviabilizando comparações da evolução da despesa.

Mas há mais: é que, se para o Governo os dados da despesa não são directamente comparáveis, os da receita, também ela afectada por factores excepcionais (2)… já o são. Ora, que credibilidade tem quem procede desta forma?!…

Resultado de tudo isto: depois de conhecida a Execução Orçamental de Janeiro, as taxas de juro da dívida pública reforçaram a tendência de subida, numa demonstração clara de diminuição de confiança por parte da comunidade internacional. Porque, para os credores, o que contou, tenho a certeza, é que a despesa subiu e o défice só desceu à custa de mais impostos (3). O que é francamente mau, mesmo tratando-se de apenas um mês, e existindo, claro, oportunidades mais do que suficientes para emendar a mão. Mas já se perdeu a oportunidade – irrepetível – de causar uma primeira boa impressão…

Esta forma de agir, cheia de artimanhas e habilidades contabilísticas, e com escassas e convincentes explicações já seria, em circunstâncias normais, absolutamente condenável. Porém, nas actuais circunstâncias, em que está em jogo a sobrevivência financeira do nosso país, e em que se exigia transparência e rigor inatacáveis, trata-se de brincar com o fogo. Sendo que é Portugal que pode sair esturricado, por mim, só posso desejar (muito!…) que isso não aconteça.

(1) A verdade, porém, é que, quando tal aconteceu, já todos os debates sobre o tema tinham sido feitos, com óbvia vantagem para o Governo e com desvantagem para quem, como eu, tinha chamado a atenção para esta forma de agir, que não tem nada a ver com opções políticas: é de um procedimento no domínio da ética, da verdade e da honestidade que se trata (ou melhor: da falta de qualquer um destes atributos, o que é lamentável, sobretudo vindo da parte de quem comanda os destinos do País). E que, por exemplo, terá visado diminuir artificialmente o valor das ‘despesas com pessoal’ em 2009, ano em que terminava uma legislatura e em que o fracasso financeiro do PRACE se tornaria visível (a entrevista ao SOL da semana passada de João Bilhim, ex-responsável da estrutura de missão que desenhou este Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado, é elucidativa: ‘Reforma do Estado falhou por medo do Governo’…; só para se ter uma ideia, o valor previsto pelo Governo para as ‘despesas com pessoal’ em 2009 e 2010 situou-se em cerca de EUR 2 mil milhões abaixo do valor corrigido pelo INE…).

(2) Antecipação para Dezembro de 2010 da distribuição de dividendos de várias empresas, bem como da compra de viaturas, o que aumentou extraordinariamente a receita entrada em Janeiro em sede de IRC (+153,4%) e de imposto sobre veículos (59,9%), respectivamente.

(3) Mesmo assim, o défice do Estado ainda foi superior ao de Janeiro de 2009 em mais de EUR 200 milhões.