a estreia em portugal da última obra de jean-luc godard, film socialisme, vai servir de pretexto para rever a sua obra na cinemateca, evocar a o seu percurso e debater a questão de saber para que serve o cinema hoje; por outras palavras, qual deve ser o papel do cineasta? ou, de outra maneira, o cinema, tal como o continuamos a produzir e consumir – e especialmente o cinema americano, que anualmente é celebrado na cerimónia dos óscares – é apenas um instrumento de alienação, tal como marx e brecht a definiram? e, se é, como se pode combater? com que armas? para que público?
o debate é oportuno. e o percurso de godard, que nos anos 60 foi, seguramente, o cineasta que, depois de rosselini e orson welles, mais vocações despertou e mais cineastas influenciou no mundo inteiro, é a voz mais autorizada para servir de bandeira aos que proclamam que a ‘fábrica de sonhos’ é, afinal, uma fábrica de pesadelos.
film socialism é lançado juntamente com um documentário da autoria de emmanuel laurent e antoine de baecque, deux de la vague, dedicado à história da amizade frutuosa (que acabaria em ruptura violenta) entre godard e françois truffaut, os dois mais brilhantes espíritos da sua geração e os que mais contribuíram para a revolução da nouvelle vague, esse movimento que, nos anos 50, ajudou a reescrever toda a história do cinema, à volta de uma revista mítica, os cahiers du cinéma, e graças à cinemateca de henri langlois, que foi desenterrar os filmes do passado que jaziam nas caves dos estúdios. e quando, no final dos anos 50, passaram à realização, godard e truffaut revolucionaram o cinema francês e despertaram uma onda de entusiasmo nos futuros cineastas dos cinco continentes, ao ponto de inspirar toda a geração do ‘sexo, drogas e rock’n’roll’ que, paradoxalmente, acabaria por salvar hollywood.
truffaut, que viria a morrer precocemente em 1984, não está cá para animar o debate com esse eremita que é hoje godard, refugiado na sua suíça paternal e que lança os seus filmes-poemas-manifestos, de tempos a tempos, à costa, como um náufrago que lança garrafas com manuscritos ao mar. unidos até 1968, ano em que lideram o movimento em defesa de langlois, que o ministro malraux quisera destituir da direcção da cinemateca, e em que também obrigam ao encerramento do festival de cannes (por ironia, o mesmo malraux contribuíra decisivamente, em 1959, para impor o primeiro filme de truffaut, les 400 coups, no festival que agora combatiam), truffaut e godard viriam pouco depois a separar-se, através de uma troca de correspondência com contornos abjectos e de chantagem moral, em que godard se sai muito mal.
truffaut que, ao contrário de godard, enquanto viveu, se recusou a cortar com a vocação do cinema enquanto arte popular, esse cinema que o salvou, em adolescente, das decepções da vida e o ajudou a admirar os grandes mestres, deu-nos, a partir de 1968, alguns filmes que fazem parte da nossa memória: a noiva estava de luto, as duas inglesas e o continente, adèle h., la chambre verte, la femme d’à coté. godard, pelo contrário, investiu na militância política, converteu-se ao maoísmo, apoiou o movimento para a libertação da palestina, sonhou com a revolução que o che, morto no ano anterior, quis exportar para os cinco continentes, e, sobretudo, entendeu que o cinema só fazia sentido se estivesse ao serviço da libertação dos povos e das consciências dos cidadãos. morto mao em 1976, encerrado o vietname, godard retira-se para a suíça e troca o radicalismo revolucionário por um radicalismo estético com o mesmo inimigo: a américa capitalista e, agora, sobretudo, o seu cinema.
há qualquer coisa de heróico neste abandono e de exemplar nesta renúncia, mas há também o seu reverso: godard, seguramente o cineasta que mais marcou sucessivas gerações de seguidores, deixou-os pelo caminho e não tomou, com eles, o poder. sobretudo, e isto é apenas o início de um debate oportuno e necessário, a sua condenação radical de todo o cinema que continua a acreditar nos poderes da narrativa e na ilusão do real, a ser tomada à letra, ter-nos-ia privado, entre muitos outros, de alguns filmes admiráveis de clint eastwood e de paul thomas anderson, de todd field e de sam mendes, de almodóvar ou de fatih akin.
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