Das Duas Uma

O ‘Leão da Estrela’ é um dos momentos mais altos de um género que, com meia dúzia de filmes, se tornou fenómeno de popularidade.

na passada terça–feira, o país foi surpreendido pela notícia do falecimento de artur agostinho. nessa noite, muito oportunamente, a rtp1 decidiu prestar-lhe homenagem, programando um dos melhores filmes em que ele participou: o leão da estrela. voltei a vê-lo com o mesmo prazer com que o vi dezenas de vezes ao longo dos anos. mesmo se, como de costume, algumas peripécias desprezam a credibilidade e o desfecho passa com ligeireza por cima da verosimilhança, a verdade é que este é um dos momentos mais altos de um género que, entre a canção de lisboa, de 1933, e os três da vida airada, de 1953 (com duas últimas variações que são o costa de áfrica, de 1954, e dois dias no paraíso, de 1957), e com apenas uma dúzia de filmes, se tornou um fenómeno de popularidade que atravessou gerações.

por que razão essas comédias eram tão populares? a primeira razão reside no génio dos actores, forjados nessa grande escola que foi a revista: vasco santana, que em duas décadas fez apenas quatro filmes como protagonista, antónio silva, que entrou em dez dos doze filmes do género, mas também maria matos, ribeirinho, beatriz costa, milú e uma plêiade de excelentes ‘secundários’, como barroso lopes, santos carvalho, costinha, teresa gomes e tantos outros. depois, o talento de alguns argumentistas e dialoguistas, desde o próprio vasco santana a josé galhardo e joão bastos, e a inspiração de alguns autores das músicas, entre os quais sobressaem os nomes de raul portela, raul ferrão e joão melo.

mas há uma segunda razão que levava o público a identificar-se com aquelas histórias: elas eram o espelho fiel das aspirações e das ilusões da pequena-burguesia lisboeta, que constituiu, até pouco depois do fim da ii guerra, a base social de apoio do salazarismo, e que se via, assim, retratada no cinema. poucas coisas nos dão melhor do que esses filmes o retrato do que eram os comportamentos e os valores dessa classe intermédia entre o mundo rural, de onde eram originários (o proletariado está ausente desses filmes), e os restos de uma aristocracia desacreditada e de uma burguesia de proprietários (a grande indústria, por tabela, também não existe no cinema desse tempo).

mas esse mundo harmonioso, onde os conflitos sociais estão ausentes, esse país de gente modesta, ordeira, simples, honesta e trabalhadora, onde só pelo casamento das filhas era possível a ascensão social, escondia sempre um embuste: graças à apropriação de uma casa apalaçada e à encenação de uma vida acima das suas posses, os personagens faziam-se sempre passar pelo que não eram. que isso passasse sem reparo da censura e com o entusiasmo das plateias, ficou a dever-se sobretudo ao génio de antónio silva, esse ‘homem das arábias’, que engendrava expedientes para enganar o próximo, ajudando assim a pequena-burguesia daquela época de bons costumes a vingar-se da pequenez dos sonhos com que fingia conformar-se.

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