quem ama é diferente de quem é», escreveu-o pessoa na voz de alberto caeiro. quando amamos alguém, já não somos nós; somos a nossa melhor versão misturada com a projecção do que pensamos adivinhar que o outro mais deseja ver em nós. quando amamos, não só saímos da nossa realidade, como também nos transfiguramos. ficamos mais altos, mais fortes, mais belos. há quem fique com os olhos mais claros. ou então, ainda que a cor dos olhos não se altere, somos nós que a vemos mais clara, porque passamos a olhar para o outro pelo filtro do amor.
mas essa fase pode corresponder apenas a uma paixão intensa e violenta, de rápido consumo e curto tempo de vida. quem é que dizia que uma estrela que brilha com maior intensidade vive metade do tempo? atracção, paixão, desejo não são sinónimos de amor, mesmo que apareçam todos ao mesmo tempo, fazendo-nos acreditar que estamos a viver uma grande história de amor.
o amor pode já lá estar, nos pequenos gestos e em ínfimas atenções com o outro, e são esses pequenos sinais que mais tarde iremos recordar como prenúncios de uma verdadeira história de amor, já que os gestos rasgados, os ramos de flores e as declarações de joelhos têm mais a ver com a capacidade do actor em fazer um bom papel do que com o que lhe vai na alma.
o problema é que na fase do encantamento ambas as partes se comportam como o pavão durante a dança que antecede o acasalamento – damos sempre o nosso melhor, mostrando todas as nossas penas: eles com os sapatos muito engraxados e nós acabadas de sair do cabeleireiro. ou seja, além de nos sentirmos como se estivéssemos produzidos para gravar o teledisco, o outro vê-nos de uma forma especial, porque está vidrado em nós. o amor materno é a melhor expressão deste estado; os nossos filhos são sempre lindos, ainda que se assemelhem aos filhos da fiona e do shrek.
o verdadeiro amor vem depois, quando o filtro se gasta e os defeitos começam a saltar à vista. ele afinal arrasta os pés, ele usa chinelos velhos, ele fuma e não abre as janelas, ele ressona, ele é ciumento, ele esquece-se de comprar os meus iogurtes quando vai ao supermercado, ele adormece a ver televisão, ele tem barriga, ele embirra com o gato, ele adora motocross e chega a casa imundo a cheirar a óleo. quando tudo começou suavemente e não entrámos no delírio inicial da idealização excessiva, é mais fácil aceitar o outro como ele é. ao contrário, se o colocamos num pedestal ao nível do olimpo e dos seus respectivos habitantes, quando o pedestal se desfaz, cai tudo por terra e fica reduzido a pó, cinzas e nada. e depois é o cabo dos trabalhos para limpar o coração e começar outra vez a ganhar energia para voltar a amar.
é claro que o filtro faz sempre falta ao amor. até o criador foi magnânimo em nos diminuir a visão com a idade para que não nos vejamos tão velhos. mas o melhor filtro é o que em vez de nos esconder os defeitos do outro, no ensina a viver com eles. quem ama é diferente de quem é. normalmente é uma pessoa melhor. porque quem não ama, acaba por se tornar numa triste sombra de si mesmo.