O povo ao poder XII – O altruísmo de governar

Num dos meus livros preferidos, Os Miseráveis, de Victor Hugo, Valjean recusa ser nomeado presidente da câmara da cidadezinha onde vive, é o maior empresário e o maior bem-feitor da população mais necessitada. É um homem discreto, que não gosta de ‘importância’ e de ‘poder’, que se coloca sempre na segunda fila quando não na…

até que um dia não pode recusar mais. porque razão? porque uma mulher do povo lhe diz para aceitar a bem do povo; que devia isso ao povo, para fazer ainda mais bem. e valjean aceita, mantendo-se tão humilde, discreto e bom como antes.

isto vem a propósito da (falsa) superioridade moral que alguns ‘técnicos’ invocam perante os políticos. considerando a sua ‘isenção’, a sua ‘competência técnica’, em comparação com o pretenso comprometimento dos ‘políticos’ com interesses inconfessáveis e a sua ‘incompetência’ para resolver problemas. e o presumido apetite insaciável dos políticos por poder pessoal e riqueza.

nada mais falso – embora hoje alguns (’falsos’) políticos, felizmente uma minoria execrável, lhes dêem razão.

para já, somos todos, em princípio, políticos. todos temos – ou devemos ter – um projecto ou uma concepção sobre o governo e a organização do estado. quanto mais não seja, algumas ideias gerais sobre valores ético-sociais a implementar. e a negação da mentira, da exploração, dos anti- valores sociais. e devemos, a nós próprios e aos outros, divulgar e afirmar esses valores.
podemos fazê-lo – e é o principal – através do nosso comportamento; em conversas; por escritos e na participação em órgãos de comunicação social; conferências; etc.. fraca ‘pessoa-de-bem’ que não afirma insistentemente esse ‘bem’, esses valores.

o primeiro, e sempre principal âmbito de actuação, é a família. aqui o exemplo é ainda mais decisivo. mas a actuação deve estender-se ao círculo de amizades e ao ambiente de trabalho. alguns alcançam como pessoas o âmbito nacional; o que não deve ser um objecto em si, mas o resultado de um comportamento exemplar.

outros, irão ainda mais longe. prestarão também trabalho social efectivo e directo. serão voluntários num hospital; visitarão presos; promoverão a recolha de donativos para os mais necessitados; trabalharão numa ipss; apoiarão os vizinhos idosos ou necessitados. em portugal há dezenas de milhar de pessoas, de todas as idades, que o fazem. e fazem-no com amor pelos outros, daí o seu sucesso. a esmagadora maioria do apoio social em portugal é levado a cabo por voluntários. continuamos a fazer ‘política’, a governar os outros, servindo-os. é este, o serviço, a única forma de governo. pois este não é poder sobre os outros, mas serviço aos outros. daqui até à ‘política’ é um passo, uma simples perspectiva nova.

o que até aqui trabalhava num ipss dedicada aos imigrantes, assume a responsabilidade nacional por estes; o que trabalhava num hospital, dedica-se a gerir a saúde, melhorando os serviços; quem era advogado ou juiz, ocupando-se da justiça do caso concreto, passa a fazer ou a propor leis justas.

ou seja: o ‘cidadão’, assente na sua formação e na sua carreira, vai mais longe, estende o seu serviço a zonas cada vez mais vastas da sociedade. fazendo-o, não por si, mas exclusiva ou principalmente pelos outros.

o dar o passo em frente pode ter lugar na juventude ou em idade muito madura. mas representa generosidade – que ninguém tem de agradecer – e um grande altruísmo. como é generosa e altruísta a mãe, a esposa, o voluntário social, etc.. quem não entender isto, nada mais faz do que projectar nos outros o seu egoísmo.

voltemos à tão apregoada ‘independência’. não pode tratar-se de independência dos valores essenciais da sociedade portuguesa: trabalho, solidariedade, empenho, família, comunidade, etc.. se fosse assim independente, o ‘independente’ transformar-se-ia num marginal. não pode ser independência da estrutura e da hierarquia da organização onde se integra. se fosse, seria melhor renunciar ao seu cargo.

pode – e deve – ser afastamento da obediência cega a ditames de organizações partidárias ou não; afastamento do seu egoísmo; solidariedade livre para com os outros.  uma organização não é um clube de futebol em que a equipa tem sempre razão, e o culpado é o árbitro. independência é ter uma perspectiva própria sobre os valores fundamentais da colectividade e a maneira de os prosseguir. e contribuir – sem autoritarismo – com a sua perspectiva, para a formação do pensamento colectivo – ou da empresa, do partido, etc.. um ser humano digno, não é (ou deve ser) sempre assim?