Atravessar o deserto

Acredito que é possível viver uma relação sem enjoar o marido.

não escolhemos por quem nos apaixonamos, mas escolhemos quem amamos. para quem se casou cedo, o assunto fica arrumado? nem sempre. há quem acerte à primeira, há quem acerte à segunda e há quem nunca acerte. e há quem tenha feitio para o casamento e quem não tenha.

estar casado dá trabalho, requer tempo, investimento, capacidade de adaptação e espírito de sacrifício. o casamento é um contrato que, a ser levado para a frente, deve incluir algum sentido de missão. e, depois, é descomplicar o mais possível, encarar o dia a dia com boa cara, trocar as voltas à rotina, cuidar do outro, ouvi-lo, aturá-lo, aprender a viver com os defeitos que ele trouxe para casa e os traumas que transportou para a relação. é preciso ter endurance, qual peregrino que atravessa o deserto, sem perder o ânimo nem a coragem. citando a sábia agustina bessa-luís: «enjoaste o teu marido? aguenta».

e como é a vida de quem, vivendo solteiro um grande amor, sonha com uma vida a dois? também pode ser uma travessia no deserto, se o outro não sabe bem o que quer ou quer mas não pode, ou mora longe, ou a vida não deixa. neste caso, o melhor é esperar sem esperar, deixar correr e desejar o melhor para nós e para o mundo. neste caso, só atravessa o deserto quem quer, quem acredita que do outro lado está mesmo a terra prometida, que não pode ser confundida com os oásis que vamos encontrando pelo caminho nem com as miragens que o nosso coração fabrica quando o cansaço nos tolda a lucidez.

karen blixen, autora do romance autobiográfico out of africa, escreveu que quando deus nos quer castigar ouve as nossas preces. o livro conta as aventuras da baronesa karen von blixen-finecke, uma mulher rica e independente que vive um casamento falhado seguido de uma relação intensa e profunda com denys finch hatton, um caçador desprendido que acredita mais na sabedoria do povo masai do que nos prazeres do conforto doméstico. karen deseja que denys assente arraiais, o que nunca acontece. o estereótipo de denys é o do homem livre e indomável, o che guevara que prefere morrer a cortar a barba, e karen acaba por perceber que, para ele, o amor não é o casamento, casa e pucarinho, mas a vivência intensa e séria de duas pessoas que se entregam totalmente quando estão juntas.

é verdade que a rotina corrói as relações e que a proximidade muitas vezes afasta as pessoas, mas mesmo assim acredito que um casamento a sério, fundado numa relação séria, feita de entrega e de sinceridade, pode juntar o melhor dos dois mundos. eu acredito que é possível viver uma relação sem enjoar o marido. e acredito que, às vezes, é mesmo preciso atravessar o deserto para uma pessoa dar valor ao que tem ou ao que pode vir a ter. «que difícil é a vida dos homens, eles não têm asas para voar por cima das coisa más», disse a fada oriana quando a rainha das fadas lhe tirou as asas.

afinal, tudo é difícil: atravessar, desistir de atravessar, alcançar, lutar, construir, aguentar, mudar ou permanecer. a única tarefa fácil é sonhar.