Das Duas Uma

‘Ad Ogni Costo’ e ‘A Solidão dos Números Primos’, dois filmes italianos, são belas surpresas que falam da Europa da ressaca.

uma boa notícia: acabo de ver dois excelentes filmes italianos – duas belas surpresas: ad ogni costo, de davide alfonsi e denis mala-gnino, e a solidão dos números primos, de saverio costanzo. ambos fazem parte da 4.ª festa do cinema italiano, que decorre em lisboa, porto, coimbra e funchal até ao próximo dia 8 de maio. são sete filmes em competição, sete fora de competição e mais sete ‘comédias à italiana’, do bom tempo em que monicelli e risi, entre outros, assinaram algumas obras-primas que enobreceram o género.

dito isto, a festa é tudo menos uma festa, e dizer que «o cinema italiano invadiu lisboa» é, no mínimo, um excesso de optimismo. à semelhança do que faz a frança, há vários anos, com a sua festa do cinema francês, a necessidade destas manifestações (que nos permitem conhecer cinematografias quase desconhecidas) prova que o cinema italiano, como o do seu vizinho, vivem, de há 30 anos para cá, numa espécie de clandestinidade.

mas a outra boa notícia é que estes filmes, como eu sou o amor, o surpreendente filme de luca guadagnino que se estreou no ano passado em portugal, são assinados por realizadores que nasceram entre 1971 e 77. ou seja, precisamente na década em que o grande cinema italiano, que durante 30 anos produziu provavelmente mais obras-primas do que o cinema americano no mesmo período, começava a morrer.

ad ogni costo e a solidão dos números primos são filmes muito diferentes, no estilo, nos ambientes e no olhar que os realizadores lançam sobre realidades muito diversas. mas têm uma coisa em comum, além da coerência formal, da firmeza do ponto de vista e da força emocional: são filmes que nos falam de realidades em tudo distantes das que haviam inspirado os seus pais cineastas, e ajudam-nos por isso a perceber melhor a europa que deles herdaram: um mundo repleto de personagens solitários e perdidos, para os quais só resta um olhar de desespero, compaixão e mágoa.

depois de 30 anos de vazio e vulgaridade (a itália moldada pela tv de berlusconi), é fácil perceber a razão porque chegámos aqui. nos filmes neo-realistas do pós-guerra havia um horizonte de esperança: os cineastas acreditavam na possibilidade de criar um mundo melhor e mais solidário, e foi essa esperança que alicerçou a obra de rossellini, visconti, fellini e tantos outros. os filmes da geração dos anos 60, em itália, em frança e um pouco por toda a parte, foram, por sua vez, a bandeira da contestação aos velhos poderes e abriram caminho a novas formas de liberdade. a europa era o centro do mundo e parecia ter criado para sempre uma sociedade que era um modelo de justiça, bem-estar e prosperidade. para perceber os filmes desta nova geração sem ilusões nem causas, temos que perceber que a europa de que falam é outra: é a europa da ressaca. é por isso que, a estes novos cineastas, parece não lhes restar mais do que olhar piedosamente para as suas feridas.

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