regressa esta semana às livrarias de cara lavada e em edição definitiva um clássico contemporâneo da literatura portuguesa que devia constar no programa de leitura obrigatória nas escolas e que é sem dúvida um dos livros mais divertidos de sempre. falo da crónica dos bons malandros, de mário zambujal, que viu a estampa pela primeira vez em 1980 e que desde então nunca deixou de me surpreender pela graça, leveza, imaginação e elevado sentido de comicidade combinado com um estilo fresco, hilariante e inimitável.
tinha 15 anos e estava de molho por causa de um surto de febre de malta, quando o meu pai me trouxe o livro e o devorei numa tarde, para o ler e reler vezes sem conta e o oferecer por sistema ao longo da vida a pessoas que acredito que o merecem.
para mim existem três tipos de livros: os maus, os bons e os que me dão vontade de escrever. fico sempre com mais vontade de escrever depois de ler o steinbeck, o murakami ou o josé eduardo agualusa. a crónica dos bons malandros foi o primeiro livro que me fez soltar grandes gargalhadas e também o que acendeu dentro de mim o bicho da escrita. página a página eu aprendia com o mário. percebi que podemos dizer absolutamente tudo, desde que encontremos uma forma inteligente e subtil de o dizer e que as personagens só funcionam se forem de carne e osso e que os diálogos só resultam se forem coloquiais, rápidos e certeiros. o mário levou pela mão, sem saber, dezenas de escritores com este clássico; passou rapidamente ao estatuto de referência literária.
esta edição, a 33.ª, conta com um prefácio de gonçalo m. tavares que explica a doutrina da malandragem. m. tavares depura a essência do malandro, a quem não basta fazer as tropelias, precisa de espectadores. e nós somos os espectadores privilegiados de uma quadrilha seleccionada composta por flávio, marlene, renato o pacífico, arnaldo figurante, pedro o justiceiro, adelaide magrinha e silvino bitoque. um gangue de gente de bem que só usa pistolas de alarme e facas de peixe e que se propõe a roubar a colecção de jóias lalique do museu gulbenkian.
durante anos diverti-me com esta obra notável, mas o melhor ainda estava para vir, quando décadas mais tarde o conheci pessoalmente e ficámos amigos.
não há homem mais encantadoramente sedutor que este eterno jovem de óculos a quem nem a calvície nem a velhice atacam. de vez em quando almoçamos e o mário consegue sempre surpreender-me com a sua graça. no verão passado, encontrámo-nos numa esplanada, eu levava um vestido decotado e diz logo o mário, «que bem que te fica essa gola alta». saboreando um tinto reserva, dizia o mário enquanto fazia o néctar dançar no copo, «isto é christian dior». e contou-me o encontro acidental com uma velha amiga que lhe caiu nos braços dizendo: «os anos não te passam por cima». ao que o escritor respondeu: «mas passam por baixo». e foi o almoço inteiro nisto, o mário a soltar pérolas e eu de caderno de notas em punho para não perder pitada. o mário no seu melhor, feliz por ser como é, sem manias nem pretensões, com aquele charme irresistível dos homens que nunca se levaram a sério e o seu sorriso malandro de quem já fez ou está para fazer. um livro imperdível, um autor inesquecível.