nestes tempos de dificuldades, desilusão e descrença nas instituições democráticas, é importante que se lembre o que foi esse quase meio século de mediocridade, opressão e atraso. um dos documentários foi maior do que o pensamento, uma série de três episódios sobre zeca afonso. o pretexto não podia ser mais oportuno: além de dezenas de canções sublimes, é a ele que se deve a canção que viria a ser o santo-e-senha do movimento das forças armadas que, nessa madrugada, fez ruir como um castelo de cartas o poder marcelista: ‘grândola, vila morena’.
produzido pela nanook e realizado por joaquim vieira, maior do que o pensamento é o exemplo do que deve ser um documentário. exaustivo na pesquisa, justo e elegante na forma, admirativo e comovente, sem excrescências nem lacunas, o filme aviva–nos a memória sobre um homem sem par e um dos maiores, senão o maior, dos músicos-poetas da língua portuguesa do seu tempo.
o documentário trouxe-me à memória uma entrevista que lhe fiz, em 1973, quando era chefe-de-redacção do cinéfilo, a revista que eu e o fernando lopes editámos nos sete meses que precederam o 25 de abril e que foi extinta dois meses depois. o zeca vivia em setúbal e nós queríamos que a entrevista fosse publicada no dia da saída de venham mais cinco, o seu novo e tão esperado lp, sobretudo depois dessa surpreendente produção que ele tinha feito, em paris, com o zé mário branco, cantigas do maio. por isso, fomos buscá-lo a setúbal e trouxemo-lo de carro para cascais, para assistir, nessa noite, ao festival de jazz, onde actuava a sarah vau-ghan. felizmente decidi começar a gravar a entrevista durante a viagem, porque, como eu escrevi na introdução, «senão, perdia-se o melhor da conversa pelo caminho».
cantigas do maio era o seu primeiro disco trabalhado no estúdio, e lembro-me de lhe ter perguntado como é que ele resolvia o problema da transposição para o palco de uma canção como o ‘grândola’, em que um dos elementos mais fortes – os passos que antecediam a música – eram impossíveis de reproduzir ao vivo. o que ele me disse surpreendeu-me na altura, mas diz tudo sobre quem ele era: «é muito mais compensador, e musicalmente muito mais interessante, pôr 900 pessoas a cantá-la, como aconteceu no sindicato dos bancários».
estávamos em novembro de 1973, e nenhum de nós suspeitava que, cinco meses depois, não seriam 900, mas vários milhões de portugueses que iriam dar-lhe razão, cantando nas ruas do país, com passos e ruídos a mistura: «o povo é quem mais ordena»! como diz o sérgio godinho no documentário: «ele abriu janelas onde nem paredes havia!».
apvasconcelos@gmail.com
