O ‘guerreiro árabe sagrado’

Oignóbil massacre de três mil civis a 11 de Setembro de 2001 alterou não apenas a nossa percepção do mundo como as nossas relações pessoais. Foi um daqueles momentos-charneira em que os valores de cada um cintilam em todo o seu esplendor.

num tempo em que a ‘tolerância’ se tornou o deus ecuménico no seio do qual repousa a nossa indiferença pelo outro, só a violência radical parece ter capacidade para pôr em evidência os princípios éticos que nos movem.

samuel huntington escreveu que, terminada a guerra fria, a «ideologia da cortina de ferro» deu lugar à «cortina de veludo da cultura». habituámo-nos a ver mutilações genitais, infanticídios e casamentos infantis justificados como ‘hábitos culturais’ e, por isso, inatacáveis (ou censurados em surdina), para não termos de nos incomodar com as vítimas desses actos.

em violência, o filósofo slavoj zizek resume: «a correcção política é a forma liberal exemplar da política do medo».

o 11 de setembro criou um cisma em que o anti-americanismo extremista ( que em portugal é, aliás, uma herança do salazarismo) se tornou visível – e, acima de tudo, a formação moral de cada pessoa se manifestou luminosamente.

a eterna questão filosófica ‘liberdade ou segurança?’ explodiu nos discursos e nas reacções de cada um.

eu tinha amigos com os quais cortei relações por causa desta pergunta. olhei para eles e percebi que, estivéssemos nós sob o nazismo e fosse eu judia, eles não me protegeriam – e talvez até, em caso de aperto, me denunciassem.

a pergunta sobre o que faria cada pessoa sob o jugo de uma ditadura nunca mais deixou de me perseguir, o que, de resto, me tem poupado a muito convívio supérfluo.

a morte de bin laden é uma boa notícia para os que sabem preferir, em todas as instâncias, a liberdade à segurança. não é que o mundo se tenha tornado mais seguro com esta morte, como afirmaram, por exemplo, obama e durão barroso.

não: aquele engraçadinho de serviço chamado michael moore não conseguirá tão depressa autorização para levar champô na bagagem de mão (sim, foi esta a pergunta que ocorreu ao homem, em resposta à morte do autor do 11 de setembro – mostrando a total ausência de respeito pelas famílias).

de um modo imediato, o mundo pode até ter ficado mais perigoso: bin laden não era, como hitler, um louco por conta própria; era, sim, um louco ancorado numa visão religiosa.

o fundamentalismo islâmico não acabará com a morte do seu chefe de fila – pelo contrário, encontrará nesse ‘martírio’ novo fogo e renovada imaginação.

a exaltação do sacrifício terreno em prol da felicidade celeste – uma constante de todas as religiões – mancha o século xxi como manchou toda a história humana. a reacção da liderança do hamas foi eloquente: «condenamos o assassinato e a morte de um guerreiro árabe sagrado».

adecisão israelista de suspender as transferências de fundos para a autoridade nacional palestiniana, em protesto contra o acordo entre a fatah e o hamas (entidade que o governo israelita tem insistido, solitariamente, em classificar como «terrorista»), talvez possa compreender-se melhor a partir desta pronta condenação do hamas ao desaparecimento de bin laden.

ou talvez não: mal a notícia foi divulgada, apareceu um politólogo português na televisão chocado com o «assassinato ordenado pelo presidente dos estados unidos». o fundamentalismo cega – e o da religião anti-americana é tão cego como o islâmico.

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