e os socialistas em geral – comentadores, deputados, ministros, embaixadores – têm lamentado a falta de ‘solidariedade’ dos parceiros europeus perante as nossas dificuldades financeiras.
primeiro, angela merkel era a má da fita, agora são os finlandeses.
há nesta questão um equívoco.
faz sentido falar em ‘solidariedade’ quando ocorre um cataclismo.
quando um país é atingido por uma catástrofe – um terramoto, umas cheias, um acidente nuclear, como sucedeu agora no japão – é natural que se espere ‘solidariedade’ por parte da comunidade internacional; e os países nórdicos, é justo dizê-lo, até costumam ser dos primeiros a oferecer ajuda nessas situações.
mas fará algum sentido falar em ‘solidariedade’ quando um país gasta reiteradamente mais do que ganha?
quando um país, durante anos a fio, não cumpre as suas obrigações, não respeita os défices a que se comprometeu, e ainda por cima ‘martela’ os resultados para procurar fugir às responsabilidades?
lembremos que, de há vários anos para cá, os nossos défices têm sido sistematicamente corrigidos em alta – aproximando perigosamente portugal da conduta fraudulenta da grécia.
tem-se tentado fazer passar a ideia de que as dificuldades portuguesas são um problema recente, causado pelo ataque dos especuladores, de mãos dadas com as empresas de rating, e precipitado pela recusa da oposição ao pec 4.
ora isso é uma gigantesca mistificação, que só serve para nos enganarmos a nós próprios.
para não irmos mais longe, recordemos a célebre frase de durão barroso, dita em 2002, afirmando que portugal estava «de tanga».
foi muito criticado – o que mostra o estado de inconsciência em que o país vivia.
mas manuela ferreira leite, a ministra das finanças, não se atemorizou – e tentou impor uma política de austeridade.
acabaria, porém, por ser publicamente desautorizada por jorge sampaio, o presidente da república, que lhe disse na cara: «há mais vida para lá do orçamento».
depois veio o governo de santana lopes, criando-se a ideia de que era possível desapertar o cinto.
e josé sócrates, na campanha eleitoral de 2005, acentuou essa ilusão, prometendo um desagravamento dos impostos – que, aliás, nunca viria a fazer.
depois aconteceu o que se sabe.
uns primeiros anos em que se conseguiu controlar o défice – mas depois o descalabro, com o primeiro-ministro a negar a necessidade de um empréstimo externo muito para lá do que seria razoável.
recordo, a propósito, parte de um texto escrito há sete anos:
«o francisco escreveu ao primo afastado, que vivia abastadamente na bélgica, dando-lhe conta do seu desejo de ir para bruxelas. e, enquanto não encontrasse sítio para morar, pedia-lhe o favor de ficar em casa dele.
o pedido foi aceite de pronto. e o francisco lá enfiou a roupa e meia dúzia de haveres em duas malas, e meteu-se no rápido na guarda.
à chegada, o primo olhou para ele e teve dó. o modo como se vestia, o corte do casaco, a forma como se penteava, a maneira como andava, tudo lhe provocou um sentimento de repulsa.
(….)
hoje o francisco ganha muito melhor do que ganhava na terra. o problema é que gasta sempre mais do que recebe – e, por isso, o primo tem de lhe emprestar todos os meses dinheiro, o que não lhe faz grande diferença, já que vive sem dificuldades. quem se deveria preocupar era o francisco – porque o primo, um dia, pode faltar-lhe ou aborrecer-se com ele e dizer que não continuará a ajudá-lo.
o francisco desta história, que vive melhor do que vivia na terra, mas não aprendeu a sobreviver sozinho, é portugal. o primo rico que o financia e até lhe paga as extravagâncias é a europa».
escrevi este texto, como disse, há sete anos – e transcrevo-o para provar que era visível há muito tempo, para quem quisesse ver, que o país caminhava em direcção a uma parede.
e caminhava a uma velocidade crescente, porque nos últimos oito anos a dívida duplicou.
podemos, portanto, dizer que fomos apanhados de surpresa?
podemos argumentar que não esperávamos o que aconteceu?
e será razoável invocarmos agora a falta de ‘solidariedade’ dos outros?
os nórdicos, como se disse, até são habitualmente solidários.
mas também são disciplinados e rigorosos – pelo que a falta de rigor e a indisciplina lhes fazem muita confusão.
é isso que explica a atitude dos finlandeses – e até certo ponto dos alemães.
eles não percebem – e por isso não aceitam – como portugal se deixou chegar a esta situação.
e têm toda a razão.
p.s. – o 1.º-ministro fez na noite de 3.ª-feira uma insólita declaração. disse que não havia cortes nos 13.º e 14.º meses, não havia cortes nas reformas mais baixas, não havia despedimentos, não mudava a constituição – e, quando as pessoas se preparavam para saber quais seriam as medidas, pegou no ministro teixeira dos santos (que fizera figura de corpo presente) e foi-se embora.