há dias, um amigo chamou-me a atenção para um vídeo que pode ser visto em youtube.com/embed/ggmt o6jnrs, em que riccardo muti é obrigado a interromper a direcção do nabucco de verdi – a ópera escolhida para comemorar, em roma, o 150º aniversário da criação da itália –, no momento em que o coro acabou de cantar a famosa ária dos escravos, ‘va pensiero’ que, na época, se tornou o verdadeiro hino da libertação da itália. no princípio da sessão, o presidente da câmara de roma, gianni alemanno, havia subido ao palco para denunciar, na presença do primeiro-ministro, silvio berlusconi, os cortes no orçamento da cultura feitos pelo seu governo. o discurso de alemanno parece ter despertado os espectadores que, empolgados pela força lírica da música de verdi, se entusiasmaram ao ponto de reclamar a repetição da área.
o que é emocionante neste vídeo é o momento em que muti, depois de uma pausa em que esperou em vão que a sala se acalmasse, decide falar para o público, num breve discurso onde confessa que, ao ouvir o coro cantar ‘ó meu país, belo e perdido’, sentiu que, nestes tempos de esquecimento, miséria e deserção, era a grande cultura italiana que estava em risco; e aquiesceu em repetir a ária, convidando o público a juntar-se ao coro. a sessão foi transmitida pela rai3, o que amplificou o efeito daquele momento, sobretudo porque berlusconni estava na sala. além de se ter tornado o homem mais rico da itália, dono do acmilan e das três tvs privadas, berlusconi serve-se, há vinte anos, da sua condição de primeiro-ministro e chefe de um grupo político de pressão (o popolo della libertà, que nem sequer é um partido) para asfixiar a vida pública.
eu bem sei que não estamos em 1842, data em que nabucco se estreou, e muito menos nos anos 30, em que a europa mergulhou no horror do totalitarismo. mas, à sua escala, o gesto de muti representa o que kant chamou o ‘imperativo categórico’, uma espécie de juramento de hipócrates dos intelectuais, que tem andado tão esquecido e que o maestro nos vem lembrar com uma serena dignidade; e fez-me lembrar dois outros momentos extraordinários de coragem intelectual. em 1933, na sala beethoven, em berlim, com o sentimento do que chamou ‘as exigências do dia’, thomas mann decidiu enfrentar os insultos das hordas de jovens nazis que levaram hitler ao poder. e unamuno, em 1936, na universidade de salamanca, também não hesitou em responder às ameaças do general fascista millán astray e das suas milícias armadas.
não quero forçar o sentido da história, traindo a memória das suas vítimas, e comparando os tempos presentes com esses tempos em que se pressentia a iminência do terror. mas é reconfortante perceber, em momentos raros como estes, que a cultura profunda dos povos e o seu sentido de liberdade não se perdem, mesmo quando parecem adormecidos, e que nem todos os intelectuais e criadores se esqueceram das suas responsabilidades.
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