Das duas uma

Não deixa de ser reconfortante que, num país cada vez mais descrente de si próprio, rendido à fatalidade da crise, a esperança nos venha do lado da literatura.

a publicação do romance de david machado, deixem falar as pedras é uma revelação surpreendente. confesso que desconhecia os seus contos infantis, como desconheço o romance de estreia, o fabuloso teatro do gigante e o livro de contos, histórias possíveis, que vou ler avidamente. mas achei melhor não esperar para falar deste livro que vale por si e revela um escritor maduro, com uma voz própria e uma capacidade de efabulação rara na nossa literatura.

david machado é da geração dos escritores nascidos depois do 25 de abril, que não carregam consigo, portanto, as batalhas nem os traumas da geração que amargou durante o fascismo. mas, talvez por isso, a sua imersão nos anos de chumbo da ditadura é feita sem complexos, vista como matéria dramática que ele trata como um território aberto à imaginação e às traições da memória. o seu personagem é um velho, nicolau manuel, perseguido, torturado e mutilado ao longo da vida pela pide, que se vê acusado de todos os crimes, transformado depois em herói involuntário da resistência, e que, no fim da vida, decrépito, surdo e quase paralisado, encontra no neto valdemar, um jovem gordo e rebelde, o único ser disponível para acreditar nas ficções que ele lhe vai desfiando sobre a sua vida. como escreve david machado, nicolau manuel «não tinha nada para fazer. tinha as memórias, claro. mas quanto tempo é que um homem aguenta viver sem memórias novas?»

avô e neto são dois personagens fabulosos (no sentido literal do termo) para os quais david machado inventa situações em catadupa, que exacerbam constantemente a realidade e desafiam a verosimilhança. entre estas duas gerações, ergue-se, como um muro, a geração dos pais (a do escritor), seres banais, quase sem rosto, desesperadamente prosaicos, que contrariam a fantasia do filho e os delírios do avô.

david machado surpreende-nos a cada novo capítulo com uma nova e rocambolesca história, num tom de conversa com o leitor em que faz e desfaz pistas sem se preocupar em apurar a verdade, que vive escondida para sempre nas margens da fantasia de quem relata e de quem ouve. no final do livro, com um golpe de génio e que revela a maturidade do romancista, o alfaiate, amadeu castelo, deixa de ser o monstro que perseguiu toda a vida nicolau manuel como um fantasma omnipresente, para lhe roubar a mulher, e aparece-nos sob os traços de um homem simples, sacrificado pelos novos tempos (a indústria do pronto-a-vestir) e que vê, de um dia para o outro, desaparecer os préstimos da sua arte.

leiam o livro e deixem-se embarcar nesta história carregada de uma ironia cruel e que revela um escritor invulgar, capaz, como só a grande literatura é capaz, de seduzir o leitor e, no fim, deixá-lo entregue a si próprio: mais perplexo e mais rico.

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