Diga não ao funil

É tão bom ter alguém que goste de nós! Sozinhos somos muito pouco, por mais riqueza e sucesso que tenhamos.

dou mais fé à teoria da abundância no que diz respeito às relações do que à teoria do funil. a saber: quando acreditamos que o mundo é um lugar cheio de possibilidades, se perdemos um amigo porque ele provou não merecer a nossa amizade, pensamos em todos os outros que temos e nos novos amigos que podemos vir a ter.

o mesmo princípio pode aplicar-se às relações amorosas. o pior é que, quando toca às questões do coração, temos mais tendência para afunilar.

a paixão é absoluta e tem o condão de nos cegar. quando estamos profundamente envolvidos com alguém, é como se o resto do mundo não existisse; tudo o que nos rodeia perde luz, densidade e expressão. ficamos com uma visão adulterada da realidade, afunilamos para ali e depois é preciso passar pelo processo de cura da paixão para que as coisas voltem ao lugar e a realidade se reorganize dentro de proporções mais equilibradas.

um dos meus melhores amigos, pessoa que estimo pelo talento, inteligência, encanto e generosidade, com quem almoço quase todas as semanas, esteve dois meses estupidamente apaixonado por uma rapariga. foi um inferno. sempre que falávamos ao telefone, ele interrompia porque ela estava a ligar-lhe, quebrou a nossa rotina dos almoços porque passou a almoçar todos os dias com ela, só falava com ela ou acerca dela.

eu tentava partilhar os meus assuntos, mas ao fim de dois minutos lá voltava ele à vaca fria, que é como quem diz à senhora, que dominou a sua vida durante 60 dias. até ao dia em que se quebrou o encanto e ele voltou ao normal.

ainda hoje nos rimos dessa fase aguda e parva. segundo o próprio, aquilo não tinha nada a ver com amor, era uma atracção que se transformou em obsessão, acabando por se revelar num grande equívoco. mas durante aquelas semanas alucinantes ele não era capaz de ver mais nada à frente, enquanto os amigos assistiam à sua descida vertiginosa pelo grande funil da loucura apaixonada. está curado, para bem dele e da comunidade, que deus assim o preserve por muitos e longos anos, até porque o próprio afirma ter ficado vacinado contra este tipo de disparates.

é tão difícil acreditar numa vacina para este casos como fugir à teoria do funil, seja por paixão cega ou pelo conforto instalado de anos de vida em conjunto. o tempo é o grande edificador das relações. é com o tempo que nos habituamos a estar com o outro, a partilhar espaços e mundos, casas e filhos, férias e famílias. juntos construímos uma teia de segurança e de bem-estar. é tão bom ter alguém à nossa espera todos os dias, é tão bom ter alguém que goste de nós! sozinhos somos muito pouco, por mais riqueza e sucesso que tenhamos. é a presença do outro que nos torna visíveis, apetecíveis, atraentes, interessantes. o mundo olha de forma diferente para uma pessoa que está só. no fundo, todos acreditamos que o mundo aos pares é um lugar melhor; a noite e o dia, o sol e a lua, a terra e o mar, o corpo e o espírito, o pão e o vinho, o joão e a maria, o tico e o teco, a bela e o monstro.

mas não há só um par possível, e acreditar nisso é tão estúpido como viver fechado numa caixa de vidro enquanto o mundo lá fora continua a mexer. mais vale sair à rua e dar um pontapé numa pedra, geralmente aparecem logo mais pessoas.