À altura

Ainda existe a velha escola que pratica gestos como tirar o casaco para nos proteger do frio.

o meu carro novo faz-me massagens enquanto guio. é verdade. o meu carro novo, que me manda pôr o cinto assim que começa a andar, que protesta quando abro uma porta com o motor ainda ligado, que faz mais uma data de gracinhas que ainda não descobri porque só o tenho há pouco tempo e de carros não percebo assim tanto, tem um sistema de massagem nos bancos dianteiros, o que faz com que os meus níveis de stresse baixem consideravelmente enquanto guio e torna a minha condução muito mais suave. mesmo quando me distraio com o acelerador e ultrapasso os limites do código da estrada.

é um carro de linhas aerodinâmicas, o meu ds4 azul-escuro, com um look algo racing que de certo modo engana, porque é muito confortável. pertence à venerável família que também lançou inesquecíveis estrelas do firmamento automóvel como o ‘boca de sapo’ e o ‘dois cavalos’.

grande parte da minha adolescência foi passada dentro de um ‘boca de sapo’, essa espécie de apartamento de luxo em versão automóvel: o banco traseiro era tão grande que dava para grandes sestas a um ou a dois, e quando se ligava o motor as suspensões subiam a dois tempos, tipo elevador. e havia ainda o méhari, uma versão simplista de jipe descapotável, de um alegre laranja festivo, ideal para a juventude pôr as pranchas de surf e ir para a praia. o meu primeiro namorado teve um e lamento dizer que me lembro melhor do carro do que dele.

claro que nesses tempos, apesar do cinto já ser obrigatório, nem toda a gente o usava, e inúmeras vezes o jovem do méhari o guiou com dez macacos lá dentro – todos amontoados nos bancos traseiros a caminho da praia com pranchas e geleiras à mistura.

a minha geração tem quase toda histórias para contar de viagens e de aventuras num 2cv cujo livro de instruções não devia ter mais de meia dúzia de páginas, ao contrário deste, que ultrapassa as 200. e com tanta comodidade e informação sobre o mesmo objecto, pus-me a pensar: ‘com carros cada vez mais atenciosos e homens cada vez mais desatentos, o que será de nós, mulheres?’

porque é que tantos homens das gerações mais novas já não nos abrem a porta, já não nos passam para o lado de dentro do passeio, já não nos ajudam a vestir e a despir o casacão, já não se levantam quando nos sentamos à mesa? porque é que se esquecem de carregar os sacos das nossas compras, nos deixam tirar as malas do carro e não se oferecem para o levar à lavagem automática?

felizmente, ainda existe a velha escola que pratica todos estes gestos de forma automática e quase inconsciente; são os mesmos que tiram o casaco para nos proteger do frio, que nos dão o braço quando a rua é íngreme e os saltos são altos, que nunca escolhem o jantar antes de saberem o que nos apetece, que nos cuidam, nos mimam, nos protegem, que é afinal a essência da forma masculina de amar.

começo a pensar que, se é bom ter um carro novo por ser tão cómodo, ter um senhor ao lado é igualmente bom. é que as senhoras portuguesas precisam e merecem a companhia de senhores à altura. e, além disso, gostam.