conhecia-a em circunstâncias dramáticas para mim, e descobri uma pessoa singular, ao mesmo tempo decidida e justa, que não gostava de deixar as coisas apodrecer sem solução, que não se conformava com o que achava que estava mal. o o lugar do morto tinha parado há meses porque o produtor havia desviado metade do orçamento para outro filme, e não se mostrava capaz de o acabar. a zezinha tinha sido nomeada presidente do instituto português de cinema e atendeu o meu pedido para que se encontrasse uma solução rápida, justa e pragmática que impedisse que a minha carreira de cineasta acabasse ali. encontrou. e o filme pôde ser acabado. nunca, nas direcções que a antecederam e lhe sucederam, alguém teve idêntica atitude: vários filmes apodreceram, com os responsáveis a fazer de pilatos.
oito anos depois, reencontrei-a como adjunta de santana lopes na secretaria de estado da cultura, durante o tempo, breve, em que estive à frente do efémero secretariado do audiovisual. raramente, para não dizer nunca, encontrei alguém tão impaciente por fazer obra, por encontrar soluções, ao mesmo tempo tão frontal e tão diplomata, tão ideológica e tão pragmática. ela acabou por sair, inconformada com a falta de condições para fazer o que achava que devia, e eu fiz o mesmo com uns meses de intervalo e pelas mesmas razões.
finalmente, quando morais sarmento criou uma comissão para estudar a privatização de um canal da rtp, a zezinha, movida por outras fidelidades, aceitou o desafio. nessa altura, troquei com ela extensos e-mails porque achei que ela era, de todas aquelas pessoas, a única que podia ouvir os meus argumentos e opor-se àquela inconsciência. estávamos, pela primeira vez, em campos opostos, mas eu sabia que, quanto mais não fosse pelo seu patriotismo, ela nunca iria dar o seu amén à ideia de privatizar um instrumento decisivo da soberania do país. admirava-a, concordava quase sempre com ela, mesmo se estávamos em campos ideológicos opostos: ela era de direita, eu de esquerda, ela era crente, eu não. um dia disse-lhe: «aparte deus, o que é que nos divide?».
numa altura em que o país se afunda e deixa de mandar no seu destino, em que somos considerados ‘lixo’ pela sinistra moody’s, em que o governo se prepara para vender as pratas ao desbarato, a zezinha morre – antes de assistir ao desastre. talvez o deus em que acreditava a tenha querido poupar à humilhação de ver o seu país, que ela amava de forma exacerbada, afundar-se nesta ‘apagada e vil tristeza’, como um batel desgovernado numa europa à deriva.
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