O Miguel Bombarda finou-se

Na última terça-feira, 5 de Julho, abandonaram o Hospital Miguel Bombarda os seus últimos cinco utentes.

serão reinstalados numa nova estrutura no restelo, concebida e equipada para doentes com as suas características.

mais uma ‘instituição total’ termina o seu caminho, em nome da qualidade de vida dos cidadãos com problemas de saúde mental.

o primeiro hospital psiquiátrico do país – ou ‘hospital para alienados’, como era chamado no tempo de d. maria ii – foi instalado em 1842 no edifício do velho convento de rilhafoles, e por ele passaram, ao longo dos últimos quatro séculos, os três tipos mais significativos de organizações a que ervin goffman chamou ‘instituições totais’.

segundo este sociólogo norte-americano, estas instituições definem-se assim: «todos os aspectos da vida se desenvolvem no mesmo lugar e sob uma autoridade única (muitas vezes simbólica). funciona em sistema de massificação. todas as etapas da vida diária estão estritamente programadas, toda a sequência se impõe de cima, mediante normas explícitas, e há um corpo de funcionários para as fazer cumprir. as diferentes actividades obrigatórias são integradas num único plano racional, deliberadamente concebido para consumação dos objectivos institucionais».

pelo convento de rilhafoles passaram, sequencialmente, três tipos de ‘instituições totais’.

primeiro, um colégio de reeducação de jovens condenados pelo santo ofício por heterodoxia religiosa ou por ofensas menores à moral e aos bons costumes, sob tutela da congregação do oratório de são filipe nery.

depois, com a extinção das ordens religiosas, aí foi instalado em 1835 o real colégio militar, até à sua transferência para o convento de mafra, em 1848.

com a vazio provocado por esta transferência, o espaço ficou destinado, até terça-feira passada, a todos os doentes do foro psiquiátrico.

três áreas completamente diferentes usaram, portanto, durante centenas de anos, as mesmas instalações e as mesmas metodologias globais.

grandes esforços foram feitos para que, nos últimos 50 anos, o convento de rilhafoles testasse novas metodologias, procurasse generalizar as que davam sinais de eficácia, utilizasse outras experimentadas por pioneiros de outros países, e fizesse rupturas quando as restantes estratégias não eram suficientes.

no final da década de 70, eduardo cortesão, então director da comissão de gestão do hospital, migrou com dois outros psiquiatras (os drs. domingos neto e david payne, este já falecido), mais uma assistente social e uma terapeuta ocupacional, para o então anexo da ajuda. e reintegraram nas comunidades de origem a maioria dos 150 doentes crónicos lá ‘despejados’ para ‘vegetarem’.

a novidade criou anti-corpos e fortes adesões. outro jovem psiquiatra se lhes juntou – álvaro carvalho – e, com os primeiros médicos internos e estagiários, transformaram uma clínica psiquiátrica da faculdade de ciências médicas de lisboa num vivo e activo departamento de psiquiatria e saúde mental.

mais profissionais imbuídos do mesmo espírito da saúde mental comunitária foram progressivamente passando para lá. em 1989 separaram-se ‘à força’ da casa-mãe, que tentava estrangular a iniciativa. passaram a estrutura autónoma: departamento de psiquiatria e saúde mental do hospital de são francisco xavier.

foi com este movimento, há 30 anos, que se iniciou o encerramento do hospital miguel bombarda.

o jovem psiquiatra é agora coordenador nacional da saúde mental.

antes, tinha tentado sarar algumas feridas de algumas das vítimas da casa pia de lisboa. os jovens adultos chamavam-lhe ‘the boss’. ainda chamam.

os doentes mentais ganharam, no tempo, aos diferentes grupos vítimas das ‘instituições totais’.

o miguel bombarda finou-se – e a renda do edifício chega para financiar 18 projectos.

catalinapestana@gmail.com