Das Duas Uma

Tenho que reparar uma falta: confesso que não fui ver às salas José e Pilar, o documentário que Miguel Gonçalves Mendes dedicou aos últimos anos de vida de José Saramago com a sua mulher, Pilar del Río.

mas a saída do filme em dvd dá-me o pretexto para reparar essa falta e recomendá-lo a toda a gente. eu sei que a visão de um filme em casa não substitui a visão na sala (é como ver um quadro ou a sua reprodução), mas dá para perceber o extraordinário trabalho que miguel mendes nos legou. e para fazer algumas chamadas de atenção.

a primeira: em 2010 foram exibidos nas salas 7 documentários portugueses, contra 15 longas-metragens de ficção, o que não deixa de ser um fenómeno inédito e de louvar. a segunda é que miguel mendes só à terceira tentativa é que conseguiu ver aprovado o seu projecto pelos júris do ica, e só depois de as produtoras de almodóvar e de fernando meirelles (o realizador de ensaio sobre a cegueira) terem decidido investir no filme. a terceira é que josé e pilar fez até agora cerca de 22.000 espectadores só em portugal (além de ter sido um êxito em espanha e no brasil), ou seja, mais do que a média dos outros 15 filmes de ficção nacionais (3 dos quais tiveram menos de mil espectadores).

aquarta é que miguel mendes passou três anos com o casal, entre idas e vindas a lanzarote e viagens pelo mundo a acompanhar o nobel e a sua mulher – o que foi fundamental para que ambos se habituassem à sua presença, e para que, em vez da tentação da pose (quando não há essa relação de confiança), ou, pelo contrário, do voyeurismo (quando o realizador é um intruso), o filme nos mostre o lado mais espontâneo de um e outro e se tenha tornado um dos mais preciosos documentos sobre os últimos anos de um grande criador que alguma vez alguém fez. ao seu lado, o filme que wim wenders fez sobre nick ray é um objecto obsceno.

miguel mendes, que tem 33 anos e se prepara para filmar o evangelho segundo jesus cristo, ajudou-nos a perceber e admirar saramago e revela-nos algumas coisas importantes: uma, é a fantástica história de amor entre josé e pilar, que desafia a idade e as idades; a segunda, é a extraordinária mulher que é pilar, uma mulher de grandes convicções e com uma força invulgar, cuja relação com saramago contribuiu também para reavivar o sonho de uma grande ibéria, onde caberiam todos os povos da península, sem hegemonias nem submissões, e que, desde o século xv, alimentou a imaginação das coroas peninsulares, de d. joão ii a carlos v.

josé e pilar é, a todos os títulos, um filme admirável e um contributo decisivo, graças ao que revela da grandeza de um e outro, para revelar a nossa óbvia vocação ibérica e aproximar finalmente os povos de espanha e de portugal, sem rancores nem ressentimentos. seria o melhor tributo que poderíamos prestar a estes dois personagens admiráveis que miguel mendes nos ajudou a conhecer ou descobrir.

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