não há palavra mais bela, nem mais portuguesa, e por isso mesmo mais nossa e mais querida do que a palavra saudade. e se o fado poderá vir a ser património imaterial da humanidade em novembro, a saudade também o devia ser, pois não há sentimento que melhor defina a nossa natureza.
é um facto, ainda que custe a admitir aos mais positivos e optimistas: a saudade misturada com fado faz parte de nós; só num país como o nosso é que o rei que invoca maior sentimento de saudade é justamente aquele que se perdeu no nevoeiro deixando o reino nas mãos dos espanhóis. se o nosso sangue fosse castelhano, o nosso rei mais saudoso seria d. joão ii por tudo o que fez pelo progresso de portugal, mas não é assim: a literatura, a poesia e a própria história encarregaram-se de alimentar o mito do jovem rei que, ao que parece não era lá muito certo da cabeça, além de ter apenas um testículo.
é tão bom sentir saudades de alguém! as saudades arrancam-nos do dia-a-dia, põe-nos a sonhar, a comprar discos antigos e a renovar o stock de almofadas da sala.
as saudades fazem-nos companhia. às vezes estão tão presentes que é como se se materializassem: então chamamos por elas, batemos no estofo da cadeira ao lado da nossa e convidamo-las a sentarem-se ali connosco, como se de um amigo de escola se tratassem. e é nesse momento que ganham movimento, luz, se enchem de cores e já não são um sentimento abstracto, mas uma presença real nas nossas vidas.
houve momentos da minha vida em que acordei com tantas saudades de alguém que mal me conseguia levantar. outras vezes, aqueles que amo e que já partiram aparecem-me em sonhos e é quando penso que talvez o sono seja mesmo uma segunda vida e que as almas perduram no eterno para lá da existência corpórea.
diz-se que a saudade é sempre maior para quem fica. esse misto único que combina os sentimentos de perda, de distância e do amor, e que só existe em português e em galego, não se aplica apenas a pessoas. lugares e objectos, tal como músicas e guloseimas, estão na ordem do dia para os mais saudosistas: todos os verões fico com saudades da minha praia de infância, s. martinho do porto, e quando lá vou, visito sempre o hotel palace do capitão que era a casa do meu avô. e depois vou à rua dos cafés comer um crise – uma frigideira de barro com batatas fritas e um ovo estrelado – para finalmente dar uma volta pela praia a salivar pelo carrinho de bolas de berlim da cecília, que é a filha da cecília que vendia os bolos aos meus pais.
e tudo isto são diferentes expressões do mesmo sentimento que me alimenta o património afectivo e me forra o coração a papel de seda. sento-me a observar o vai e vem incessante de bando de miúdos nos quais reconheço feições de velhos amigos e dou comigo a lamber a ponta dos dedos para não perder nem um grão do açúcar da vida.